terça-feira, 10 de dezembro de 2013

DOIS



(Ian Francis)



-- Ninguém vai acreditar...


Ela coloca a cabeça no meu ombro.  É sua maneira de demonstrar carinho. Há muito tempo já tinha perdido toda aquela marra. Sua expressão agora é toda menina. De menina triste, mas menina. Pura defesa, aquela cara fechada. Coisa de quem já sofreu muito por causa dos outros, e também por si. - E deve ser também parte do jogo para intimidar os mais atirados, os “fãs” -. Pergunto se ela tem ideia de quanta gente veio até ali só para vê-la, esperando-a sair; doidos, malucos, pirados, sedentos apenas por um olhar. Ela pega minha mão. A mesma mão que sempre uso para escovar os dentes, passar a marcha no carro, futucar o ouvido e evocar companhia nas noites insones. Depois segurou meu dedo, o fura-bolo, o “apontador”, o que discou o zero no orelhão sujo do aeroporto para realizar aquele sonho dos outros.


-- Você é bobo. – Ela me disse, numa resposta tardia para o meu primeiro comentário.


Sorriu do jeito dela sorrir, sem mostrar os dentes e repetiu: Agora só a palavra bobo. “Bobo”. Já ouvi tanto isso, só que em outros ‘tons’, não saindo assim, entre dentes, sendo formado por dois pequenos biquinhos próximos daquele sinal no canto da boca. Não, ele existe, ou melhor, sim ele existe, é de verdade. O sinal é, eu não, eu sou outro, nem me reconheço, falando coisas que são o contrário do que sinto, repetindo piadas... 


Sorriu novamente, agora igual naquele clipe, igual mais cedo no olhar que me devastou completamente, naquele olhar que só até ali, até receber aquela enciclopédia, aquele dicionário, aquela antologia poética em forma de olhar que me deixou igual a um deserto eu pensei: “Já tenho história pra contar para os netos...”. E agora? Ao lado dela, depois de tudo. Sinto que tenho ideias para escrever um segundo romance. Tudo bem que agora sei muitas coisas, inclusive que é uma troca injusta essa: Uma noite feliz e dez anos de sofrimento só lembrando dessas horas. Fora os ciúmes que sentirei. Será que ela permite que eu sinta ciúmes um dia? Nunca mais senti ciúmes, nem de mim eu sinto ciúmes, pois se sentisse não permitiria isso, ser só um passatempo, uma mera desculpa contra dois uísques a mais, um ex-cafajeste e uma cama grande demais.


-- Você me permite...? – Nem consigo terminar e ela já se adianta.


-- O que?


-- Que eu te peça para que nunca mais me olhe de outra maneira... Mesmo que seja só por hoje... Enquanto ouvimos o relógio roubar um pouco de nós?


Ela não responde, alisa meus cabelos, põe a mão na minha nuca e me puxa. Não, definitivamente ninguém vai acreditar.

Cid Brasil

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