domingo, 15 de março de 2015

BATISTA


(Edouard Manet)



Também não temos os ídolos que queremos. O primeiro artista que vi na vida foi um cantor de churrascaria, um gaúcho chamado Batista. Meu pai, um de seus melhores amigos e por muitos anos mecenas de sua carreira, garantia que ele, o primeiro artista (ou alguém denominado assim), nunca deu um dia de serviço que não fosse segurando um violão. Batista foi até o fim de sua existência, que infelizmente terminou sábado passado, fiel a seu destino de cigarra. Zombador das formigas.

Quando não era domingo, dias de seus shows na churrascaria, aparecia na minha casa montando numa bicicleta. Conversava com a empregada, cantava para a Tânia algumas canções do Roberto Carlos, permeando seu repertório com músicas infantis – junto de versões obscenas sobre o natal e o coelho da páscoa – para que no fim fôssemos no freezer roubar mais uma cerveja do meu pai, que nunca estava.

E quando era domingo, dia de seus shows, e ele notava que ninguém estava dando a mínima para suas músicas, punham-se a contar piadas e meu momento favorito era quando ele revertia os slogans celebres da televisão, culminando sempre com o da própria churrascaria (na época, o péssimo: “uma família para servir a sua família”) dizendo: “Uma família para roubar a sua família!”. Finalmente ganhava aplausos e eu gritava para ele cantar a “da turma da Xuxa e o parabéns a você”, como o show já não existia, ele cantava e cantava os parabéns a você e o ilarilarilariê num ritmo gauchesco. Um dia ganhou na loteria e resolveu virar patrão, investiu todo o dinheiro numa churrascaria em Pernambuco, possivelmente para ter sempre onde tocar, mas ficou deslocado, não cantava. Já não andava só, como tanto gostava, precisava de motorista, pois não sabia dirigir. E sua maior mágoa foi que passaram a lhe entregar as contas nos lugares, além de lhe pedirem dinheiro emprestado. O papel tinha se invertido e agora o aplaudiam sem o violão, riam quando não dizia nada. Escapou dessa de bicicleta. Só e na mesma Monark bateu outra vez na porta de minha casa e eu perguntei pelo carro, pelo motorista e ele respondeu: “Se fui pobre não me lembro, se fui rico me roubaram”. Mas meu pai tinha se separado da minha mãe e já não havia cerveja em casa. Só guaraná e ele ainda tomou dois comigo e cantou a música da Xuxa e por fim, refletiu um bocado e disse que as coisas iriam mudar. Nunca mais apareceu.

A última vez que o vi, ele, já diagnosticado com cirrose, estava em Sarandi, no Rio Grande do Sul, “se exilando”. As formigas venceram. Tentando lhe alegrar um pouco, contei quando ia até a casa de minha mãe, visita-la, eu fazia questão de por seu CD para tocar, para relembrar daquele tempo. E o Batista limitou-se a repetir: “Meu CD... Aquele tempo...”.

Espero que tenha ido muita gente ao seu velório e que nele, alguém faça como fez o próprio Batista no velório do meu pai, propondo junto dos amigos, que cada um recordasse “algum causo alegre do falecido, para conservar a memória”. Se possível, gostaria que alguém abrisse “uma gelada” no enterro, como ele tanto quis fazer e foi recriminado por todos. Se não levamos a vida que queremos bem que podíamos ter o velório que precisamos. Fazia tempo que eu não bebia e se agora, nesse café metido a besta, toma a primeira, é em sua homenagem. Baita personagem!

Cid Brasil

domingo, 8 de março de 2015

ELIAS


(Michael Sowa)



Elias, o entregador de jornal que acaba de chegar nessa madrugada, é na verdade o inventor da própria madrugada. Acho que foi Poe ou Wilde ou Marguerite Duras – talvez tenha sido Georges Perec – que disse preferir as madrugadas, pois assim não precisava diferenciar espíritos errantes de pessoas reais. Que outro instante das vinte e quatro, nessa cidade horrendamente quente, Elias poderia pedalar sua bicicleta com calma e fluidez, quase como se flutuasse, sem chamar a atenção, como faz agora. É quase, quase, como se sua bicicleta, ao invés de rodas, tivesse assas e hélices. Confeccionada por algum professor Pardal. 

Fazia tempo que eu não invejava ninguém. Ultimamente, tenho evitado profundamente o esnobismo, não só em meus textos (vide a citação sobre fantasmas atribuída a outros, embora ela seja minha) e nas roupas que visto (vide minha bermuda furada), mas também em tudo que faço. Quero que me percebam cada vez menos. Que me convoquem cada vez menos. Que me peçam cada vez menos a opinião – na verdade, nunca pediram e estou bem assim. Falar de si, que não num diário, sempre soa muito esnobe, sempre. Temo parecer com esses jovens escribas, imitadores de Clarice Lispector, cujo único dom é fazer com que se tenha vontade de ler a Clarice original imediatamente.

Sei que o entregador de jornal se chama Elias porque o porteiro falou seu nome a pouco. Perguntou: Cadê você, Elias? E Elias respondeu que a gráfica agora fica em João Pessoa. Por isso a demora. Coisa estranha, pensei, em João Pessoa? Mal conversaram e Elias montou no seu avião que parece uma bicicleta e se foi. Sumiu na esquina dos meus olhos, que sem querer virar o rosto, com medo de espanta-lo, ou de perceber que Elias era mesmo um fantasma, continuei a olhar para baixo. Entendi, aí sim, o porquê de João Pessoa tê-lo atrasado tanto: É que ele veio de lá voando. Tenho que descer para pegar o jornal unicamente para confirmar a data de hoje, que já amanhã. Duvido que nas folhas trazidas por Elias, além de furtos, mortes e blefes, se noticie que as bicicletas ou os entregadores de jornal andam flutuando por aí.

Agora olho para cima e num truque de transição literária aprendido num livro de Enrique Vila-Matas, que ouviu o escritor francês Jean Echenoz dizer que quando queria ir de um ponto ao outro nos seus livros, sem parecer um açougueiro, punha sempre o personagem olhando para o céu e este, ao ver um pássaro, seguia com a narração “pois assim podia ir aonde quisesse”, e assim pego carona na nuvem igual a uma tartaruga que vejo e vou até minha prateleira e leio o dia em que Maria Rosa – esposa de Campos Lara, os dois, personagens de O Feijão e o sonho, de Orígenes Lessa –, “jogando na cara do marido, com a erudição que as palestras literárias ouvidas ao acaso da miséria do lar, lhe haviam trazido”, disse que poesia não enchia barriga, que não valia nada, pois se até Camões havia pedido esmola, de que adiantava tanto delírio? Para que tanto desperdício de inteligência? E sem nos decepcionar, Campos Lara, responde:

-- Sabe-se que Camões pediu esmola, mas você sabe quem deu esmola a Camões, Maria? 

Sabe-se que os entregadores de jornal não voam, mas será que eles não são mais importantes que as manchetes que trazem? Desde Gutemberg, acredito que sim.

Cid Brasil