quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

POSTO DE TROCA




(Ryan Gander)


Ando muito interessado na impostura, na farsa, muito mais que na esperança para o ano vindouro, principalmente depois do que me ocorreu ontem, quando finalmente resolvi testar a cafeteira que ganhei no amigo secreto e ela me fez a última vergonha do ano perante as visitas e a namorada. Um ano negro e frio me aguarda, pensei. Um ano que será igual a essa água preta caindo no carpete. Preciso de mudanças, pensei. E como resolução nova, na manhã do último dia do ano, botei minha melhor roupa e fui até a loja trocar a cafeteira, não sem antes pegar a nota fiscal com meu amigo secreto e ter o desprazer de descobrir que ela custou, na promoção, vinte reais. 

Enquanto aguardava ser atendido no setor de trocas onde todos carregavam sua falta de sorte, um ventilador indeciso dizia não para os presentes. Tentei me apegar a bíblia dos azarados para não chorar: O manual do consumidor. Outra imagem forte é a daquele livrinho degolado por uma cordinha, também balançando para lá e pra cá. Na mais bela prosa burocrática do manual, acabei me distraindo e lá descobri que eles não trocavam os produtos se eles falhassem devido a quedas, incêndios, inundações, maremotos e ataques de animais domésticos ou selvagens. E também não trocavam os produtos comprados na promoção. Ou seja: Estava mais que ciente da futura derrota.

No meio da instigante leitura e de outras metáforas avariadas, ouço o companheiro ao meu lado (carregando um criado mudo destroçado, provavelmente vitima de um ataque de um puma ou da fúria de sua esposa devido ao mau gosto da escolha) reclamar com o filho no celular que ele dormira demais e perdera a hora de ir até a lotérica apostar na mega-sena. O homem gritava: Tem certeza, Fabinho, que as lotéricas fecham de uma hora? Hoje? Tá, tá bom... E logo em seguida o homem pôs Fabinho no bolso da camisa e buscou confirmar com uma senhora ao lado a veracidade da informação. A velha, segurando a caixa contendo uma piscina de plástico, disse que sim. Porra, mais um ano na merda! Esbravejou o homem.

Meu número era o sessenta e quatro. O ano da ditadura. O setor de trocas estava lotado e eles ainda estavam na semana de arte moderna. Tradução: Estavam na senha vinte e dois. Uma criança começou a abrir o berreiro. Imaginei que a mãe o quisesse trocar. Como não tinha nenhum livro, nada para ler exceto o manual do consumidor e o calor estava insuportável, notei que Jesus via tudo aquilo enquanto devorava um pingo d’ouro. Tive essa certeza porque a minha frente um garoto gordinho segurava um pacote de salgadinho vazio e lambia os dedos. No seu boné estava mesmo escrito: Jesus. Quase chorei de angústia, mas fechei os olhos e fiz como fazia no teatro. Improvisei. Fugi do script de homem medíocre. De que modo? Dei uma de louco. Cutuquei o homem ao meu lado, o que queria ser milionário e citando Kafka, lhe disse: O senhor sabia que é nos escritórios onde a preguiça é melhor disfarçada? E me levantei. Na saída, encontrei um mendigo e entreguei para ele a cafeteira morta, o cupom fiscal e a senha. Expliquei a ele a situação. Ele teria de desempenhar o meu papel no último dia do ano. Se conseguisse, ganharia uma cafeteira. Se não conseguisse, poderia repassar o objeto para frente. Fiquei um minuto em pé, no seu posto de mendicância. Ninguém me deu um centavo durante minha representação. Pela primeira vez no dia, me senti leve.
Cid Brasil

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

SANCHO TAMBÉM NÃO


(Michael Sowa)


MINICONTO SOBRE A JUSTIÇA

A empregada da casa do menino era caolha e alcoólatra. Creio que um fato explica o outro, ou pelo menos o primeiro fato deve ser fruto do segundo. A empregada também surrupiava garrafas de uísque e lâmpadas do banheiro da casa dos pais do menino. O menino sabia disso e em troca dos silêncios a empregada tinha que aceitar ler com o olho bom (e com qual seria?) gibis para o menino durante a tarde. O menino tinha seis anos e estava na alfabetização. A empregada, para não gastar o olho bom ou por puro tédio ou por pura sabedoria tinha a seguinte metodologia: Lia a historinha e a certa altura parava e dizia: Você está aprendendo a ler e se quiser saber como termina tem que ir por conta própria agora. Meses depois o menino descobre que a empregada caolha inventava todos aqueles diálogos entre Cascão e Cebolinha, pois também não sabia ler.

MINICONFERÊNCIA SOBRE O CONFORMISMO

Ás vezes, muitas vezes, penso que é mesmo bom que tenhamos só uma vida para desperdiçar, como dizia o Abujamra: “A vida é sua, desperdice-a como quiser!” E eu penso que nessa vida que temos de desperdiçar, não é de todo mal que existam deficientes contentes com suas peças faltando, nem poetas analfabetos. Nem meninos que repetem de ano na escola e sorriem do próprio azar ao assumirem que dormiram demais na aula durante o ano letivo; meninos que dizem isso e que certamente no ano que vem farão tudo de novo. Ou seja: Dormirão outra vez em sala, quiçá por terem ficado até altas horas lendo romances ou se masturbando noite adentro.

MINICONFERÊNCIA SOBRE A IRONIA

Quando adolescente, intui que havia uma verdade secreta nos livros e que para poder escapar de um futuro envolvendo escola-faculdade-emprego-casório-filhos-e-caixão só havia um jeito. Um caminho. E esse caminho era o seguinte: Largar a escola e ler o máximo de livros que poderia conseguir durante a vida. Até ali só havia lido gibis e revistas de mulher pelada – não sei o que esse último dado significa, creio que aqui também se aplica aquilo de um fato explicar outro fato, ou pelo menos de o primeiro fato ser fruto do segundo. O primeiro livro que comprei após largar a escola, com quatorze anos, foi Dom Quixote. Eu não sabia, mas Dom Quixote é um romance que fala de alguém que enlouquece... De tanto ler. Dom Quixote é a história de Alonso Quijano, que cansado de uma vida medíocre, uma bela tarde veste-se com as panelas da casa e resolve ir a rua e repetir todas aquelas façanhas dos romances de cavalaria que leu durante a vida. Eis uma sinopse safada de Dom Quixote, de Miguel de Cervantes.

MORAL DA HISTÓRIA OU MINICONFERÊNCIA SOBRE A IMAGINAÇÃO

Sancho-Pança, que por puro interesse (e depois por puro afeto) aceita ser o fiel escudeiro de Dom Quixote naquelas aventuras inventadas, não sabia ler. O que isso explica? Creio que explica tudo e nada ao mesmo tempo.

Cid Brasil

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

SHOW DA MADRUGADA



(Emilliano Ponzi)



Eu não sei vocês, mas eu quando mais novo acreditava possuir um enorme talento, talvez o maior que um jovem de quinze anos pode almejar: O talento (ou a crença) de imitar o Silvio Santos. Passei seis meses da minha vida assistindo a seus horrendos programas e me comunicando através de frases como: “Vai pra lá, vai pra lá!”, ou “mas quem quer quem quer dinheiro?” além de interromper com muito entusiasmo aulas de ensino médio, parabéns a você e aglomerações em geral só para puxar o coro e cantar: “Festa divertida, colorida de emoção/ dia de alegria, então sorria e vem pra cá... Ritmooo, é ritmo de festaaaa”. E como a vida é mesmo uma eterna pegadinha estrelada pelo Ivo Holanda, e nós as eternas vítimas desse deus ex machina com bonezinho surrado, a minha comédia só podia, como diz o Roberto Bolaño (não o Chaves, e sim o escritor Chileno) acabar em tragédia. 


Tudo ruiu no dia em que alguém filmou meu desempenho de Silvio durante uma ceia de natal. Foi um choque assistir no visor daquela filmadora a bestial expressão que eu fazia para atingir a voz do homem do baú – uma expressão de guaxinim epilético e possuído. E o pior foi notar que riam de minha terrível mascará e não da imitação. Prometi a mim mesmo, após esse episódio, abandonar minha carreira de imitador do Silvio. O tempo, igual a voz do Brasil, demorou a passar. Mas passou e eu abandonei os microfones. Havia duas rádios comunitárias, uma do Trapiche e outra na Forene, que permitia que eu entrasse no ar e falasse algumas bobagens emulando o Silvio Santos. Ninguém nunca notou – os ouvi muito nas semanas pós trauma – minha ausência e se notaram, disfarçaram bem.


Buscando um final menos triste para esse texto, resolvo dar uma mão ao destino e ligo o velho rádio da sala. Giro o dial pelo AM e ouvindo a típica colmeia de abelhas paro na altura do que pode ser o 88,7 e escuto um de pastor chamado Nonato; são duas da manhã e a certa altura ele diz o telefone aberto para os ouvintes. Resolvo ligar lá só para saber se aquela ainda é a antiga Mar Azul FM, caso seja, quero perguntar ainda se meu antigo amigo Branco do Pagode continua com seu Show da Tarde. Espero o Pastor chamar o intervalo para ligar. Após dois toques, o próprio Pastor Nonato atende. Tiro as dúvidas que quero tirar e quando me despeço, escuto ele me chamar de filho e pedir – com toda a educação do mundo – se não posso ajuda-lo e entrar no ar, para conversar com ele, diz. Ele diz que é só para dar uma movimentada. Sinto pena, lembro do próprio Branco do Pagode, sem ligações e ouvintes nos seus programas e topo falar no ar: Digo meu nome, onde moro e o que faço. Sou apresentado como um antigo fã da rádio (o que é uma absoluta mentira) e nisso, o Pastor Nonato, como querendo mesmo apimentar o programa, começa a falar enrolado e a certa altura diz que estou desamparado, que aquilo foi tudo um livramento de nosso senhor Jesus Cristo me fazendo telefonar para a rádio, justo no seu Hora da Fé. Penso em desligar o telefone, mas de certa forma a fala exaltada do Pastor faz um profundo sentido e percebo que é o momento certo de exorcizar o meu demônio particular e começo a imitar o Silvio Santos. Pastor Nonato me chama de Satanás e eu digo: “Rarái”. Sai desse corpo! E eu digo, “mas você está certo disso, Nonato?”.  Sangue de Cristo tem poder! “mas se você não ganhar Nonato, quem ganha é a carta!”.


Infelizmente os créditos do meu telefone acabaram aí. Olho no espelho e no lugar do meu reflexo está o próprio Mefisto com voz de Silvio, chamando o sorteio da Tele Sena de natal.

Cid Brasil

sábado, 28 de novembro de 2015

UM RETRATO




(Giorgio de Chirico)

Muita gente, ou apenas duas ou três, perguntam se essas pessoas de quem escrevo existem. Ou se tal situação foi real. A realidade é essa janela, e ela mostra agora um vendedor de frutas que sobe a rua e ao seu lado vai um moço com um violão preso as costas. Sempre que vejo alguém com um violão assim, recordo de uma tia minha lá do Piauí que gosta de apontar esses músicos do acaso e dizer: Lá vai mais um indo brincar de Chico Buarque! Quando eu fazia teatro, a cada nova peça que estreava, fazia questão de telefonar para Teresina e contar tudo sobre o espetáculo para minha Tia – hoje vejo o quão ridículo era informar Tia Filó de minhas aventuras teatrais, ou mesmo avisar do horário, do local ou até da função de meus colegas de cena, estando ela quilômetros e quilômetros de distância – só para ouvir: Hum, então você continua brincando de ser Francisco Cuoco, não é rapaz? Ou: Ótimo, agora temos mesmo um Tarcísio Meira na família; era só o que faltava acontecer para minha cunhada... 

O mau humor de minha família paterna sempre me cativou muito. Assim que ela atendia ao telefone, eu amava perguntar o que ela fazia naquele momento só para ouvir absurdos do tipo:

Estou esquentando uma água para por no ouvido do seu Tio...

Ou

Estava indo riscar uma vela para Satanás... (sua gíria para ir fumar).

O curioso é que quando parei de fazer teatro e de bancar o louco-da-casinha (palavras dela), nossa comunicação se encerrou. Nossas conversas não resistiram a banalidade ou a perguntas sobre familiares perdidos pelo Brasil ou sobre sua saúde, melhor que a minha, por sinal. Acho que no fundo Tia Filó sonhava em me ver nas telenovelas; queria apontar para a TV e dizer para as velhas do bairro: Vocês viram o meu sobrinho ontem? O novo Fagundes? Não esqueço nunca sua fala na última conversa que tivemos, sobre no fundo ser correto que eu brincasse de ser artista; afinal, disse ela, não há artistas, futebolistas, bichas-loucas ou criminosos no braço de nossa família. Sem esses tipos, ela disse, seria insuportável um jantar de natal. E logo depois, ouvi um conselho que me acompanha até hoje. Invente algo para você, meu sobrinho, brinque de outra coisa...

Adoraria telefonar agora para Tia Filó e ouvir suas piadas de velha ranzinza, suas esculhambações contra as noras ou contra deus e o diabo na terra do sol lá do Piauí. Talvez, ao escutar que agora tenho brincado de escrever, ela até me recomendasse fumar meus contos recentes. Escreve-los, como aquele personagem de Thomas de Quincey, em papeis seda e depois recheá-los com tabaco e tragar linha por linha. Ouvi-la dizer que no fundo o importante era brincar. Ou criar, como diz o escritor inglês, pois se algo foi criado, escrito, logo, essas coisas existem. Tia Filó, assim como o Piauí ou a realidade, não existem. Só o que há é esse homem anunciando laranja, manga e maracujá a cinco reais.

Cid Brasil