domingo, 25 de janeiro de 2015

MELLINA



(Fernando Botero)


Naquela manhã – que como tantas outras começavam para ela às duas da tarde – estava assistindo seu programa favorito, o Fique Alerta, ansiosa para ver seu nome e sua foto entre as aniversariantes do dia. Curiosamente, nem as piadas do apresentador entre um cadáver e outro, melhoravam seu astral no despertar de seu trigésimo aniversário. Tomou um grande susto quando a voz desafinada do cantor de música brega, Pablo, Rei da Sofrência, ecoou pelo seu Iphone – protegido com uma capinha de Romero Britto – interrompendo não só o último Doritos do pacote e da tarde, como a reflexão. Número privado. Quem seria? 

Era Teteú, seu ex-marido, a quem agora tinha de chamar de Cristiano, só Cristiano. O que queria o senhor prefeito de Marechal Deodoro? Lhe parabenizar pela nomeação como Secretária de Cultura do estado de Alagoas. Mellina, coração palpitando por ouvir outra vez aquela voz de radialista, pensou: Aí que falta, entre um filme e outro de Leandro Hassum, essa voz... Essa boca... E saindo do transe, perguntou se aquilo não era uma brincadeira dele; afinal, como ele mesmo devia lembrar, ela deixara bem claro que se não fosse para chama-la para um papo sério, num fim de tarde no Lopana, que a esquecesse!

A conversa, como não podia deixar de ser, já que Cristiano estava entrando em seu jatinho, foi rápida. Mal desligou e ouviu Fábio Júnior trazer o nome de seu papai no visor do aparelho, Mister Washington, queria lhe parabenizar não só pelo aniversário, como pela nomeação. Emocionado, lembrou das sete vezes que bancou as idas de Mellina a Dysney, alegando que aquilo moldaria seu caráter; lembrou ainda das mensalidades pagas adiantadas do curso de Direito no Cesmac e da aprovação, depois de dezessete tentativas, na Ordem dos Advogados. 

As lágrimas rolaram de verdade quando recordou que sua filhota fora acusada de desviar quinze milhões de verbas públicas enquanto prefeita de Piranhas – uma mentira, disse Mister Washington , quantas vaquejadas e shows não aconteceram lá? Quantas coisas você promoveu cultural e socialmente, minha filha? Não tema! Após o papai, Mellina viu as mensagens de texto pulularem no visor do aparelho que tinha na capa uma foto sua abraçada com Pedro Bial, seu muso e cronista favorito, durante um esbarrão pelas ruas de Miami. Todas SMS tinham o mesmo conteúdo: Parabéns e pedidos dos remetentes que ela não os esquecesse! – Na verdade eram só emoticons de serpentinas, mascaras de teatro, dançarinas e cifras musicais, quase nenhuma letra, pois da turma, Mellina era a única dada ao português, afinal, era poetisa e leitora voraz da série Cinquenta Tons de alguma coisa e de biografias de gente como Reinaldo Gianecchini e Edir Macedo (pois um pouco de religião, de deus, dizia, nunca era demais).

Esqueceu o Doritos solitário e o pacote de Passatempo intacto em cima da cama e correu para o escritório. Ligou o computador, leu as manchetes onde diziam que Renanzinho, um antigo namoradinho seu de adolescência e agora governador do estado, tinha finalmente anunciado os nomes de seu secretariado. Renan, ou Nanam, como todos em Murici o conheciam, estava sério na foto, aqui Mellina exercitou as bochechas, sorriu, Nanam parecia outra pessoa, tão diferente daquele gordinho sem camisa, no bloco do Azul, em Murici, rebolando freneticamente ao som de um cover de Chiclete com Banana, quando eram apenas filhos de gente importante de Alagoas.

(Continua...)

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

CLAQUE


(Poster do filme: "Vocês Ainda Não Viram Nada!", de Alan Resnais. Arte de Blutch)



Senhoras e senhores do júri: O baile é o seguinte: Um perfil numa rede social, nunca é só um perfil numa rede social. Assim como sexo nunca é só sexo ou uma piada é só uma piada. Por ora, fiquemos nas redes. Nossas postagens não estão além do jardim do bem e do mal, como diria Nietzsche. Tampouco não é porque “ninguém comentou que não se ofendeu”. Redes sociais dizem muito de nossas carências, buscas, anseios e preconceitos. 

Recentemente Mark Zuckerberg, o criador do FB, divulgou sua meta para 2015: Que era, segundo ele, ler mais esse ano. Chegou até a inventar um grupo para que os seguidores indicassem e debatessem sobre as obras literárias que ele escolhesse. Não há altruísmos na “meta para 2015” de Zuckerberg. Ele não quer ficar mais culto ou colaborar com a estante de seus devotos, o que existe é algum vinculo com o mercado editorial americano, que é poderosíssimo por aquelas bundas; o que há é a busca por ganhar algum enquanto finge estar disseminando cultura. É um pouco como aquele pensamento, que em geral partem dos autores de Best-Sellers, de que é melhor as pessoas estarem lendo Crepúsculo ou Cinquenta Tons de Cinza, do que não estarem lendo nada. O dano aí, no caso dos livros mais vendidos, não são as histórias, mas sim seus autores, que não puxam, não guiam, não encaminham seus livros para outros livros, não funcionam como mapa ou indicação para o ouro. Para a arte. 

Negam-se acintosamente a passar a bola para um Shakespeare ou um Kafka ou uma Clarice Lispector. E não dar esse passe, amigos, é o maior dos pecados e por isso mesmo merecem apanhar e apanhar no oitavo círculo da Divina Comédia. Eternamente.

Arte e artistas não só abrem cabeças, eles as costuram e empurram nossas cadeiras de rodas. São valentes, como o verdadeiro amor tem que ser valente, como a verdadeira arte tem de ser valente. Levar-nos pelas mãos até outras mãos, também é arte. E também é amor. Falta arte, falta amor, falta coragem nos dias que correm.
E é impossível falar de valentia e arte essa semana, sem falar nos bravos cartunistas e na equipe de redação do Charlie Hebdo, que foram assassinados em Paris na última quarta. Aquela tragédia só fez aumentar as cores de um pesadelo que tenho, na verdade um trauma. Explico: Uma vez, quando julgava ser ator, fui convocado para um papel dramático, obviamente me esforcei horrores nos ensaios e no dia da estreia, assim que entro no palco e digo minha primeira fala – meu papel era o de um homem traído, numa montagem de Nelson Rodrigues – a plateia caia na risada. Prossigo bravamente com meu papel-desempenho (como diria Guimarães Rosa) e minha coleguinha de cena, para acompanhar os que assistem, passa a improvisar, a alimentar as gargalhadas, a pedir para ser aceita, e de repente me vejo dentro de um pastelão, ou dentro de um daqueles horrorosos episódios do Sai de Baixo. Era como se eu fosse o único tentando avisar do incêndio que havia nos camarins para um bando de hienas. Creio que há uma peça teatral do Lourenço Mutarelli em que um palhaço de circo é convidado para uma festa, e ele, deprimidíssimo, passa a contar seu drama para os convidados e a cada lágrima derramada o som de uma gargalhada inunda o teatro.

Ultimamente ao abrir o facebook, essa sensação de estranhamento tem aumentado. Para que plateia estou falando? Que amigos convidei para vir e para assisti-los? É o que me pergunto todas as vezes em que vejo os dentes de alguém. 

(Talvez o teatro já esteja vazio e agora eu possa pensar alto: Vocês não tem ideia como esse texto salvou o meu dia. Obrigado).

Cid Brasil

domingo, 4 de janeiro de 2015

QUESTÕES


(Noorullah Shirzada)


A)
Em alguns vestibulares se cobra a leitura de Sentimento do mundo, de Drummond. É o livro errado de CDA, errado por que não há a celebre abertura, do já careca Poema de Sete Faces, que consta em Alguma Poesia, onde um anjo torto manda o pequeno Carlos (e todos nós, jovens imberbes) sermos “gaúches na vida”. Sermos esquerdos. Há também neste mesmo volume, o Papai Noel às avessas, que entra pela porta dos fundos, tateando a cozinha “com olhos espertos” até achar um queijo e comer, e que logo depois puxa um cigarro e não acende, “como medo de queimar as barbas postiças”: Trata-se de um gatuno que está roubando os brinquedos e saindo em silêncio de uma casa abastada, um gatuno-poeta, inofensivo como sempre são inocentes e inofensivos os malandros de Drummond. Os únicos malandros que acreditamos poder um dia encarnar quando somos adolescentes.


B)

Há um belíssimo poema de Gabriela Mistral, poetisa chilena, chamado “Todas íamos ser rainhas”, onde ela conta de suas amigas de infância, dos reinados que cada uma sonhava para si e de como esses reinos levariam todas elas ao mar. Eram quatro meninas: Uma terminou criando sete irmãos e “deixou o sangue no pão”; outra o mais perto que chegou da água foi quando beijou um marinheiro; Efigênia, diz Gabriela, se apaixonou por algum estrangeiro e ninguém mais a viu (“pois homens se assemelham ao mar”), já Lucila foi a única que “nas luas da loucura, recebeu reino de verdade”.


C)

No meio dos tantos causos e anedotas sobre literatura que Enrique Vila-Matas habitou-se a contar em seus romances, uma das melhores que li é sobre o poeta inglês e porra-louca, Lord Byron, que tinha como bichos de estimação um lobo e um urso, e que certa vez, conta Vila-Matas, Byron amarrou o seu urso dentro do campus de Cambridge, onde estudava, só “para zombar da regra que proibia ter cachorros no college”.


D)

É janeiro em Maceió, e além do verão, a temporada é de outdoors anunciando matriculas e futuros abertos para nossas crianças. Eu já quis ser rainha quando moleque. Uma vez escrevi um poema na escola junto com um amigo, onde nós éramos sósias de atores de novela. O poema/novela ficou batizado de Éramos Moças. Nessa época eu não conhecia Gabriela Mistral, nem Drummond e muito menos Vila-Matas. Mesmo assim, se um dia fui moça, logo, fui rainha, uma rainha digna de roubar presentes e de possuir ursos. Correto?

E)

Correto. Encerra Tia Mistral: “Cantam as outras que já vieram/ como as que vieram cantarão:/ Na terra seremos rainhas/ e de verídico reinar/e sendo grandes os nossos reinos/ chegaremos todas ao mar”. Fim das questões.


Cid Brasil