segunda-feira, 21 de novembro de 2016

ESPEJO NEGRO



(René Magritte)



Certa noite, tendo acordado de sonhos intransigentes, Siqueira Jr, o apresentador de TV inimigo dos maconheiros em Alagoas, se vê metamorfoseado num típico “alma”: Com cabelo descolorido, bonezinho da Nike e camisa polo rosa, ou seja: Naquele rapazote que o imaginário popular da cidade insiste em crer como o nosso inimigo público número um. Aka: Maconheiro.

Rapidamente Siqueira Jr despe-se da roupa de alma do pesadelo, raspa o cabelo, toma um banho e vê que tudo não passou de um inquietante sonho em terceira pessoa onde se via numa espiral insana de drogas e alucinações. Respira fundo, limpa o vapor no espelho e nota que ainda é um coroa grisalho, meio sarado, meio passado e com todos os dentes na dentadura ainda, mas, pensa, será mesmo que eu sou eu? Come três misto quentes no café da manhã, bebe uma jarra de suco e engole quatro bananas. Ainda tem fome, só que mais forte que isso só a pulsão, a estranha pulsão que sente em... Fumar maconha! 

Passa o dia angustiado e nos camarins da TV Alagoas, enquanto se maquia para o entrar no ar como sempre faz, pensa: Porque não experimentar? “Só para fins elucidativos e educacionais...”. A partir daí, desperta em si aquilo que Thomas Pynchon chama de Vício Inerente. Não só fuma maconha desesperadamente, como passa a consumir e a usá-la em todas as formas e derivações possíveis: Seda, pipe, bong, comestíveis e através de vaporizadores e afins... 

Paralelo a essa escalada furiosa – ou tragada – Siqueira Jr vai aos poucos mudando seu discurso nos programas e passa a discretamente fazer apologia ao uso da droga, pregando uma vibe mais suave, mais light a todos os espectadores; porém, os índices de audiência caem vertiginosamente (ou seria melhor dizer, os “whatsapp” não chegam mais a TV Alagoas como antes) e os diretores reclamam de sua nova postura mais cadenciada e humana. Temem até que ele, no futuro, possa querer bancar o “apresentador ponderado e inimigo das classes dominantes”. Nosso herói, temendo o pior, que em sua situação significa: Voltar a ser repórter, tenta largar o vício mas dá com os burros n’água, descobrindo o exu nosso de cada dia, pois até um pastor de igreja sabe, que um vício só é largado por outro.

E numa manobra nem tão genial assim, Siqueira Jr, provando ser sempre o que chega atrasado nas festas, o retaguarda dos assuntos ao invés de vanguarda, julga que precisa é de um novo antagonista em seus programas e sem pensar muito, passa a atacar a Cocaína e toda a rede envolta do monte nevado (usuários, traficantes, grandes corporações e etc). Reaproveita os velhos bordões, que passam a ser: “Cheirador, você vai morrer!” e tal e coisa. A nova onda funciona e os índices voltam a subir, os diretores ficam satisfeitos, o whatsapp da TV volta a receber mensagens escritas com erros de ortografia na mesma quantidade de outrora.

Até que um dia, Siqueira volta a ter o mesmo sonho estranho e acorda com ganas – trincadaço – de experimentar uma carreirinha só, “como fins elucidativos e tal...”. A roda viva do apresentar e a mesma, só que agora na busca por inimigos diferentes que depois passam a ser seus aliados. Vai do crack a heroína; do haxixe ao skunk... Culminando no paraíso sintético do LSD, onde certa noite, Siqueira, navegando em outra dimensão paralela, descobre a matrix e lá se depara com um duplo seu, com outro Siqueira Jr, apresentando um programa de TV onde passa horas e horas, dias e dias, condenando os maconheiros do estado no que chamamos de realidade.

Espantado com a caretice do outro “ele”, que faz uma linha, coroa-grisalho-do-uisquinho-com-gelo, nosso Siqueira “science-fiction” começa a perseguir esse Siqueira Careta ao ponto de invadir os sonhos do outro e fazê-lo consumir, pela primeira vez, aos 54 anos, um cigarrinho de maconha.


Cid Brasil

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

PIADAS



(Mistérios e Paixões, filme de David Cronnenberg)



1.
Ao ver sua conferência intitulada “tema livre” ir naufragando aos poucos, Alejandro Zambra resolveu falar sobre um tio que detestava argentinos e que certo dia se viu vitima do próprio veneno ao ser confundido com um argentino. Apanhou tanto das pessoas que o confundiram que só teve forças para chegar em casa e desmaiar aos pés da mulher. Vendo o estado lastimável do marido, ela lhe perguntou o óbvio: Porque, afinal, não desfez o engano dizendo que era chileno. O tio de Zambra respondeu: “É que me encanta que moam de pancadas esses filhos da puta na rua!”.

2.
Um repórter da TV manchete estava em Berlim para cobrir a queda do muro, que recém havia sido derrubado, e buscando algo com que preencher a matéria, notou um casal na rua falando em português e pediu para eles darem um depoimento sobre o fato histórico. Gravaram e o entrevistado se apresentou como José da Silva, comerciante. Só quando a fita chegou ao Brasil foi que um diretor reconheceu que aquele “José da Silva” tratava-se na verdade de Rubem Fonseca, famoso contista e famoso também por detestar entrevistas e fazer qualquer pose como escritor. Quem conta essa é Ignácio de Loyola Brandão. Segundo ele o repórter, por perder o furo, perdeu também o emprego.

3.
Só conheço piadas envolvendo escritores, eis a minha obra com a qual vou me enganando dia após dias, o que termina por me fazer agir igual aos clientes de Henry Miller, que no começo de seus anos de esbórnia em Paris, trabalhou como garçom e revelou se divertir ao reproduzir uma esquete de Marcel Marceau, o mímico, perante os clientes insatisfeitos. 

Conta ele que quando alguém reclamava do filé ou das bebidas que trazia ele as levava de volta até a cozinha, demorava alguns minutos por lá, às vezes só virava o filé ao contrário e tornava a trazer o mesmo prato para a mesa, sem sequer assar mais a carne ou mudar a bebida em questão. O milagre, segundo ele, era impressionante. As coisas se transformavam com essa ilusão de mudança na cabeça das pessoas. Isso só acabou quando o patrão resolveu fazer o mesmo com seu salário, fingindo que o pagava.

4.
Há um conselho muito famoso entre os romancistas de que para escrever um romance, as condições ideais seriam cometer um crime na Suíça e passar uma temporada em uma de suas penitenciarias, devido a limpeza das celas, a qualidade das refeições, a discrição dos presos e organização geral. “Cometam um crime na Suíça”, é o conselho que os mais velhos dão aos seus pupilos.

5.
Emmanuel Carrére, na biografia de Philip K. Dick, escreve que o mestre da ficção cientifica foi perseguido pelo Macarthismo nos anos 50 e que teve até dois agentes do FBI na sua cola por um tempo. No dia em que os agentes bateram na sua porta a fim de saber das suas ligações com o comunismo (só por que sua esposa era membro do partido socialista) perguntaram-lhe a queima roupa se ele tinha ligações ou simpatias pelos russos, Dick, imagino que tentando fritar os cérebros dos agentes, quase se deu mal ao responder:

-- Não – e logo depois completar – Mas quem garante que se eu fosse comunista não responderia a mesma coisa?

6.
Um minuto de silêncio para todos aqueles escritores que entenderam mal o conselho de cometerem um crime e acabaram aprontando na Turquia e não a Suíça, onde revivem, dia após dia, as cenas que vimos em “Expresso da Meia-Noite”, filme de Alan Parker. 

7.
Por falar em piadas e tragédias: Nunca saberemos se William Burroughs matou de fato a esposa com um tiro de espingarda na cara ou se estava apenas brincando de Guilherme Tell – segundo ele mesmo disse a polícia – tentando acertar um copo acima da cabeça de sua companheira.

Cid Brasil

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

VAPORWAVE



 
(...)

-- Que tranqueira é essa, meu filho?
-- É vaporwave, vó!
-- Não, não, isso aí é musica de toque de celular.
-- Deixa eu explicar, é um estilo novo, de música sintética que...
-- Música uma caceta! Para mim, meu filho, musica é João Mineiro & Marciano; Leandro & Leonardo...
-- Mas vó, não mexe nos meus fones, não...
-- Esse é o problema dessa geração: Maconha & celular... Vou até escrever um ensaio sobre isso. Fumam um e depois ficam ti, ti, ti, ti no celular...
-- Vó, a senhora não escreve ensaios e isso aí não são os fones de ouvido, são meus dreads...

***

Vocês não iriam achar que agente lê autores grandões para vir aqui e escrever qualquer coisa para vocês, não é? Mas o fato é que é sim. Até porque isso é muito vaporwave também. Leio Cannetti e escrevo igual ao Padre Marcelo Rossi. Num episódio de Bojack Horseman, numa viagem de acido, ele resolve escrever um livro, mas só o que manda para a editora são 20 links do youtube, impossíveis, lógico, de serem transcrito. Seria essa a escrita do futuro? Seria o passo além de Sebald e suas obras? 

***

Meus pais são gaúchos, tem churrascarias e só isso já impediria – numa alma dotada de bom senso, é claro – de que eu fosse vegetariano, mas como minha geração é prodiga em inventar modas – não a toa somos campeões em formar artistas sem obras – lá fui, para São Paulo, querer ser artista e virar vegetariano por um dia.

Era meu primeiro dia em Sampa e deslumbrado com os prédios; com a livraria cultura no conjunto nacional; com as lojas de roupas; com o visual das pessoas e com o metrô, esqueci da hora do almoço. Pensei: Já que estou em outra cidade, no lugar onde se melhor come no país, vou de algo diferente. E o diferente era um restaurante vegetariano, daqueles onde o cardápio fica na entrada (de tão caro que são), com as opções escritas num quadro negro na calçada. Só havia, como na vida, uma opção: Uma tal Young Salad, que pelo que entendi vinha com rúcula e sementes de girassol. 

Entrei no lugar e esperei o garçom, o som era vaporwave, essa musiquinha de elevador mixada com toques de celular e barulhinhos de videogame, que se ouvirmos muito ou ficamos com dor de cabeça ou presos para sempre num filme do John Carpenter. Para o meu espanto apareceu um magrelo, de óculos de acetato e bigodes arrebitados que certamente seria um dos primeiros a morrer num filme de terror. Aqui tudo é diferente, pensei, até os garçons, adapte-se, Alcides! Pedi. 

A salada demorou uma hora para chegar e eu que tive de ir buscar o prato no balcão. Na verdade, aquilo não era um prato, era uma tapoware, fechada, cheia de rúculas e sementes. E o vaporwave rolando... Tudo é diferente aqui, calma, Alcides... No balcão, não havia aqueles velhos conhecidos da gente: Borges, minhoto... E eu, um extra-virgem naquele tipo de ambiente, julguei que a salada já vinha temperada, mas na primeira garfada, foi como mastigar uma resma de folhas xamex. 

Eu queria tempero e não queria incomodar o garçom – na verdade, nem ele queria ser incomodado, pois sumira. Foi então que notei, na mesa ao lado, uma garrafinha com um borrifador e dentro um liquido que para minha avó seria definido como “puxando para o verde”. Peguei a garrafa e repeti o mantra: “Aqui tudo é diferente, vaporwave, garçons de aspecto detestável, gente de bermuda no frio... Então, porque o azeite viria numa garrafinha normal?”.

Mirei o borrifador na salada e puxei o gatilho me sentido o Clint Eastwood atirando nos inimigos: Era como se atirasse no garçom, como se atirasse no preço das coisas, nos bigodes arrebitados, nos prédios, na música vaporwave, nos meus cabelos que já viravam dreads com a poluição... Já estou adaptado, pensei, consegui temperar uma salada em São Paulo, o que esperar mais? E na primeira garfada da minha vida nova, notei o inevitável:

Era vidrex.

Cid Brasil