sábado, 15 de maio de 2021

CURSO DE ESCROTOS CRIATIVOS



 

“Foi o pior dos tempos, foi o melhor dos tempos...”, dizem que este celebre começo de O Conto de Duas Cidades, de Charles Dickens, surgiu enquanto o autor inglês, vejam só, estava escrevendo justamente O Conto de Duas Cidades. Mas nem sempre foi assim na história da literatura universal. São inúmeros os casos de obras primas que vieram a lume enquanto seus autores não estavam debruçados sobre suas escrivaninhas, mas sim exercendo outras atividades alheias a escrita.

Portanto, foi pensando nisso que nós da Startup Verruga Dourada, em parceria com a extinta secretaria de cultura e o extinto ministério do trabalho, resolvemos lançar um edital que visa contemplar você, escritor agrafo, que ainda não sabe o que quer escrever mas tem toda a vontade de descobrir. Em principio serão 10 autores selecionados para nossa residência artística – na casa dos outros. Nosso programa te ajudara a encontrar inspirações e caminhos até suas obras futuras através de prosaicas atividades domesticas como lavar pratos, passar roupa, cuidar de crianças, fazer compras ou cozinhar para completos estranhos em troca de alimentação, um teto e poucas horas de descanso. Caso o inscrito demonstre alguma dificuldade de adaptação ou bloqueio criativo, ele poderá ser induzido a atividades que exijam mais concentração e foco narrativo para acelerar sua evolução literária, como varrer enormes descampados, cuidar de animais de grande porte em fazendas ou lavar quadras poliesportivas no chamado Brasil profundo.

E se nem assim você conseguir escrever uma linha sequer, mesmo que seja um pedido de resgate para seus pais, adotaremos exercícios de observação e introspecção com as chamadas caminhadas peripatéticas; pois é sabido que desde Aristóteles que a percepção e a comparação do mundo precisam de ar fresco. Então, está esperando o que para começar a trilhar o caminho (a pé) do seu futuro prêmio Nobel? E enquanto isso entregar algumas marmitas pelo caminho? Afinal, essa volta a nossa ancestralidade é mais que necessário em épocas de virtualidades e vazios como a nossa e fazer isso junto de outros artistas enquanto leva alimento a outro semelhante em estilosas mochilas térmicas, de cores quentes, é enriquecedor. Tudo, é claro, da forma mais segura possível para ninguém sair perdendo nem um só centavo caso você deixe de entregar um sanduíche por causa de uma epifania  em plena Avenida Jatiúca.

Você, escritor nascido em berço de ouro, que ainda sorri nas fotos de divulgação, saiba que na ausência de guerras para exercitar seus assombros, lares conflituosos ou relacionamento abusivos (ou no caso de você ser o mala da relação) nosso edital irá abrir sua cabeça, com o perdão do trocadilho. Ou você acha que Graciliano Ramos escreveu Vidas Secas para falar sobre os benefícios das dietas low-carb? 

 

sábado, 1 de maio de 2021

ERI JOHNSON'S PRO FUTVÔLEI


Ator, humorista, apresentador, imitador do Romário, pegador, parça dos jogadores dos anos 90, pessoa inconveniente em programas de auditório, influencer, bon vivant... São muitas as facetas de Eriovaldo Johnson Araújo de Oliveira, o popular Eri Johnson, mas uma coisa, além da sua indefectível pinta no rosto e do seu imenso carisma, que salta aos olhos do público a cada nova aparição: O que, afinal, é Eri Johnson? 

Todo mundo que acompanhou a carreira ou não de Eri sempre teve essa curiosidade, então por isso esse game, lançado com apenas 21 anos de atraso para o finado console Playstation 1 vem a lume para sanar as dúvidas de uma legião de fãs, e detratores, do interprete do mítico Reginaldo, em De Corpo e Alma (1992). 

Apesar de ser um jogo esportivo de uma modalidade até então desconhecida nos videogames, e que também ninguém dá muito a mínima na vida real – outra sacada dos produtores essa –, pinceladas da biografia de Eri são reveladas para o jogador entre uma partida e outra de futvôlei, independente de vitórias ou derrotas, pois assim como o protagonista do game, ele vai falar dele mesmo ou fazer uma graça queira você ou não. Outro acerto da produção é que nesse Eri Johnson’s Pro Futvolei, onde é claro, controlamos o próprio Eri, nossos adversários em longas batalhas nas areias de Copacabana são seus próprios personagens, como o citado Punk Reginaldo, o homessexual Lulu de Barriga de Aluguel ou sua imitação do Romário. A fase final é contra, no fundo, seu maior nêmeses: A pinta no rosto. 

Claro que entre um saque e um rebote você terá ajuda de outros ícones da chinelagem carioca, como Renato Gaúcho, Wolf Maya, Conrado, garçons da Churrascaria Porcão e Alexandre Frota. Há também diversas opções de customizações da sunguinha de Eri. E aí, ta esperando o que? Ou como diz o próprio Eri em sua versão Instagramer: “Pra que (ficar de fora)?". 

Cotação: **.


segunda-feira, 26 de abril de 2021

OPORTUNIDADE

 

(Molly Bounds)

-- Nossa! Mas olha só para você, cara! Tá do mesmo jeito!

-- Tú acha?

-- Porra, estais um menino ainda.

-- É... Na época do ensino médio eu não era careca, mas... Acho que conseguir manter o peso.

-- Há-há! Que é isso.

-- Tempão, né? Faz quantos anos?

-- 15, né?

-- 15. É verdade. Passa rápido... Agora to com 32.

-- Eu também!

-- Mas e aí, fora isso, o que me diz?

-- Ah, estamos na mesma. Tentando ganhar a vida.

-- Eu também! Tu me conhece, não gosto de ficar parado.

-- É verdade, mas deixa eu adiantar uma coisa. Primeiro quero te agradecer, por você ter puxado papo lá no insta da minha esposa, tu curtiu umas fotos dela e ela comentou comigo, “mas esse não é o Serginho, que estudou conosco?” Aí na hora eu pensei. É claro! O Sergio, porra! Eu pensei ainda: Como podia ter me esquecido do Sérgio... Você é perfeito!

-- Olha, eu... Não sei se é bom a conversa ir para esses rumos... Minha intenção aqui é outra.

-- O que foi? Deixa eu terminar, caramba!

-- Certo, mas vê lá, hein? Sou católico, não curto muito certas ondas...

-- Você é um piadista mesmo! Ia dizer que tava mesmo com você na cabeça, pensando em te chamar pra um papo, de repente te pagar um café, jogar conversa fora; falar de negócios...

-- Ufa! Ainda bem que você falou a palavra mágica.

-- Qual? Sobre te pagar um café? Tá sem grana?

-- Não! Falar de negócios. Sou eu e um papo bom sobre negócios, bussines...

-- Então foi perfeito! Estava nas estrelas!

-- É, eu tava apreensivo que você fosse me convidar para outras coisas...

-- O que?

-- Sei lá...

-- Fala, cara!

-- Gravar um podcast.

-- há-há. Não, não... Mas, você sabe, comunicação é importante também... E com esse mundo aí de internet... Tudo é dinâmico, se você não busca um conhecimento, sabe, se não busca um aperfeiçoamento você não...

-- Sei... Continua.

-- Enfim, tô com uma oportunidade única aí de como ganhar dinheiro. Coisa séria, nem precisa ter muitos seguidores em rede social ou internet top... Qualquer um pode entrar, aprender, investir... Demora um pouco, mas o retorno quando vem... É batata!

-- Ah, cara... É essas paradas... Aí, não!

-- O que foi?

-- Porra, perdi a hora do almoço para vir aqui te ouvir falar desses papos de coach, maluco...

-- Calma... Eu já ia chegar aonde quero chegar.

-- Tá, diz aí.

-- É dinheiro seguro. 100% online. Mas é dinheiro mesmo. Nada de criptomoedas ou essas porras.

-- Certo, certo, certo. Mas não vai me dizer que é um desses cursos que ensinam a vender cursos?

-- Calma... Não viu aquele filme de ontem, a “primeira regra do Clube da Luta é não falar do Clube da Luta”.

-- Não, não assisto mais a globo. Televisão de comunista! Assisti o filme do outro canal, aquele em que um cara barbudo é pego numa cilada do caramba, daí no fim o pai dele vem vingar ele.

-- Qual, A Paixão de Cristo?

-- Não, porra... Era um com o Chuck Norris...

-- Ah... Sim! Então, esquece isso. Deixa eu te falar o que ensina nesse curso. Pense em mim como uma porta de entrada para esse mundo novo que vai se abrir outras portas para você, através da internet e dos cursos on-line.

-- Não, não...

-- Tá bom, vou de dar uma colher de chá, mas para te explicar melhor o que é isso, eu preciso que você compre o curso, e nesse curso não é um desses tantos que tem por aí. Aqui é onde você aprende a ganhar dinheiro de verdade. Pense em mim, como um...

-- Amigo?

-- Não. Um facilitador. Isso, facilitador! E não tem mensalidade, nem nada, sabe. É diferente mesmo desses outros. É só uma vez que você investe. E é um investimento em você mesmo. Onde você pode usufruir desse método quantas vezes quiser, depois caso queira ampliar seu capital aí você pode convidar quem você quiser... Pode até dar até aulas desse método ou de algum assunto que você domina. Você vai criar um método de vender coisas para outras pessoas e quanto mais a procura por seus cursos, mais você ganha. Demora um pouco para você ter o retorno esperado, como te falei, mas você tem retorno sim, porque as técnicas que o curso te passa são ouro puro.

-- Isso era uma oportunidade de grana, agora é curso mesmo?

-- Eu chamo de conhecimento direcionado, que é hoje o que vale que tudo! Vale mais que dinheiro e no fim vai mudar sua situação financeira para melhor, mudar sua vida!

-- Se isso é tão seguro, 100% online e é tão maravilhoso, porque você está me contando isso ao invés de ficar em casa, na moita, só ganhando dinheiro?

-- Porque você é meu amigo! E eu quero te fazer ganhar dinheiro... É como está na bíblia: Generosidade... Ajudar os outros e ser ajudado... Essas porras aí!

-- Não... Deixa eu te falar do que to pensando para nós!

-- É foda...

-- O que foi? Deixa eu contar...

-- Tô a 2 anos aí ganhando dinheiro na internet com isso, na maior honestidade, com meus cursos; é seguro, e pensei em você na hora, lembrei que você sempre me ajudava com umas colinhas nas provas de Química.

-- Era física. E se você diz que está a dois anos ganhando dinheiro com isso, como é que só agora pensou em mim?

-- É que cada um tem seu tempo, você não tá ligado? Uns são mais lentos, outros mais rápidos nos seus processos, isso é uma das coisas que você aprende nesse curso, caso você queira investir.

-- Era grana, depois curso, agora virou investimento? Isso daí é dinâmico mesmo, hein? Não quer ouvir mesmo o que tenho para te falar?

-- Tô te falando que a parada é dinâmica! Olha, como estou vendo que você agora está interessado, te faço pela metade do preço. Oportunidade!

-- Tá bom, tá bom... Eu quero. Passa o número da conta que eu transfiro aqui pelo celu.

-- Boa! Você não vai se arrepender!

-- Entendi... Pronto! Feito! E agora?

-- Agora o que?

-- Cadê o tal curso, tem alguma apostila, DVD’s, aula presencial... Como é?

-- Na verdade eu te expliquei tudo já. Falei que primeiro você investia no curso, você pagou para entrar já sabendo do que era um investimento nesse curso, no caso, um curso que pode te ensinar a dar palestras, fazer conferências... De repente, você pode criar uma turma e montar um curso para falar do que tu quiser! É dinâmico e flexível a coisa. Agora você é um investidor, entendeu? Invista seu tempo nisso! E tem os outros módulos, e esses para investir, para entrar nisso que eu chamo de plataforma, você precisa de mais dois amigos para formar uma turma de investidores, e eles de mais quatro, porque a procura disso é grande, sabe? E quando a coisa estourar, não vai dar para quem queira mais.

-- Putz... É, isso, então?

-- Como assim? Abra os olhos, corra atrás... Isso pode mudar tua vida!  

-- Tsc...

-- Então é isso, tá certo? Pensa melhor no lance de mais amigos para entrar no teu curso. E pensa no que você quer passar no teu curso. Cria um tema, de repente... Você é inteligente, vai se dar bem! Vai se encontrar!

-- Se eu chamar mais um amigo, eu recupero o que investi, não é?

-- Sim, sim. Claro! Demora, mas recupera. Mas é bom ser rápido.

-- Tá certo...

-- Outra coisa. Falei, falei, falei, apresentei minha proposta para você mudar de vida e nem deixei você falar muito.

-- Ah, sim. Tinha uma coisa... Mas agora... Esquece!

-- O que era?

-- Ia te chamar para entrar num esquema de pirâmide...

 

domingo, 18 de abril de 2021

A MARCA HUMANA



O nariz para fora da máscara são como os traços de Van Gogh, é algo que você bate o olho e sabe do que se trata. É como uma olhada em qualquer fotograma da fase onírica de Fellini para sabermos que ali está um filme a ser evitado de Federico Fellini. Essa mescla de distração com deboche é único na história da humanidade não só porque que nos difere de outras espécies já extintas e que não foram preservadas tal como deveriam como os dinossauros, as tartarugas gigantes das Ilhas Galapagos ou os Centroavantes Brasileiros.

Tudo bem que não é novidade as pessoas tentarem sempre brincar mais que a brincadeira, dar sempre uma volta a mais no parafuso; seja andando de moto sem capacete ou topando ser fumante passivo em ambientes fechados, ou mesmo se apaixonando por mulheres que conheceram no Pagode da Segunda Sem Lei do Bar do Maçã no Tabuleiro – ok,isso foi bem especifico, mas vamos em frente.

Durante boa parte do ano de 2020, alimentei minha gastrite com o ódio que sentia dos que usavam o nariz para fora da mascara, detestava mais esse tipo de gente até do que quem não usava a máscara. Porém, como sempre acontece em momentos de crise, peitei a situação da única forma que conhecia: Chorando em casa feito um bezerro. Até que me dei conta de que já era um milagre um planeta onde metade das pessoas se deixaram levar pelo papo de figuras como Hitler, Fernando Collor, Margareth Tacher e no David Luiz como zagueiro, isso para não citar anomalias mais recentes, ou mesmo que o American Way of Life era uma coisa legal; portanto, uma parte se unir e topar se cuidar da única forma sensata que podíamos, já era um grande passo para a humanidade e o nariz para fora, talvez fosse só um pequeno passo (para a cova?).


O homem é um ser autoral, já no alertou a sociedade Brasileira de Marcas e Patentes. Então, um nariz a mostra durante uma pandemia viral, é só um lembrete do tipo que o SBT faz exibindo flashes de produtos Jequiti. Uma informação oculta a ser inserida em nosso cérebro, sem que você perceba. No caso do nariz, assim como do SBT, algo que se for possível, é bom evitar.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

SHOW DE CALOUROS




Nos esportes, a falta de aptidão natural e a má vontade dão mais na cara, porém nas artes alguém sem talento ainda consegue encorajamento, aplausos e cachês. Era o que Frederico sempre pensava quando recordava sua infância e no seu pai artista.

Além de fotografo, cantor e ator, seu pai era também dono dos meios de produção, no caso, dono de uma companhia de teatro infantil. Por muitos anos o pequeno Frederico foi não só o ator principal das peças do pai, como também a criança de qualquer outra atividade que precisasse de algum prodígio. Seu pai talvez só não o inscreveu para miss universo, de resto, lá estava Frederico e o pai.

Como em todos os meios de trabalho, e nas artes cênicas não é diferente, para as mulheres o sarrafo é sempre mais alto e por isso elas precisam abandonar os papeis infantis aos 15 anos de idade, pois depois disso tudo fica estranhamente sensual e sexual. Mas para os homens, um Peter Pan de canelas peludas, bigodinho ralo e roupas apertadas ainda é um Peter Pan. Só que aos dezoito anos Frederico deu um basta em toda aquela palhaçada. Cada vitrine viva feita em lojas do centro ou comercial de TV em que figurou; cada escada nos circos da vida foram passados na cara de seu pai. Alegou que na escola era motivo de chacota, que as meninas o evitavam. O pai ficou arrasado, sonhava que seu rebento repetisse seus passos, superasse-os; que desse mais uma volta no parafuso; mas o menino queria ser motorista de ônibus, mineiro, vendedor de sapatos... Qualquer coisa menos, em suas palavras, um desinibido.

A última conversa que tiveram faz 20 anos, foi num natal qualquer, e as últimas mensagens que trocaram no aplicativo que a globo nunca diz o nome, mas todo mundo sabe que é o whatsapp, tem 5 meses. Até hoje. Pois o hoje é o dia do aniversário de 42 anos de Frederico, que é quando salta uma notificação dizendo: “Filho, olha o que achei na internet. Parabéns!”. Junto vem um link do youtube mostrando uma participação do menino Frederico num show de calouros em um programa local, onde ele canta a música Loirinha, de José Orlando. 

No vídeo ele usa uma enorme camisa florida, parece um balão a camisa, por dentro da calça. Gel no cabelo e uns dois anéis na mão. Foi seu pai quem o inscreveu no programa, ele lembrou agora, o inscreveu mais para salvar o amigo apresentador que não tinha muitas crianças para participarem, do que para forçar o filho, agora ele lembra, a algo diferente, seu pai era desses, gostava de ajudar. Tinha senso de justiça. Foi seu pai também quem cuidou do figurino, quem o ensinou a música, dirigiu seus gestos naquela semana. 

Nos comentários do vídeo, seu pai escreveu: “Esse aí é o programa Show da Tarde. Maceió, 1988. Participação de Augusto Frederico Junior, meu filho, meu presente de deus!”. E aquilo, aquelas palavras do pai, aquele apego a datas, fatos e ao afeto quebram Frederico de uma forma estranha. A única coisa que ele consegue fazer de novo é rever o vídeo, dessa vez se acha bonitinho cantando música brega, se acha dotado de certo carisma e desenvoltura.  Pensa ainda que se o pai tivesse tido um bar ou sido um criminoso, ele também iria detestar aquelas atividades. Ajudar naqueles ofícios. Só então sente vontade de chorar, mas não consegue, tenta repetir os exercícios de quando era ator mirim para ver se lhe caem algumas lagrimas, mas não consegue. 


domingo, 24 de janeiro de 2021

EM BUSCA DO SALGADINHO PERDIDO


 
 
Que a nostalgia, depois de pais ausentes, ressentimento e boletos atrasados são os maiores combustíveis para escritores sentarem a bunda numa cadeira e começarem a escrever, isso ninguém duvida. 
 
Tanto é que uma das cenas mais marcantes de toda a literatura acontece quando o protagonista de No Caminho de Swan, de Marcel Proust, está tomando chá com bolo - a tal da madelaine, muito famosa na terra do De Gaulle - e ele tem uma epifania que o faz rememorar toda a sua vida, tudo por causa do bolinho e do tempo livre do cidadão. Obviamente aqui o leitor mais arguto irá perceber pelo amontoado de clichês que usei, assim como a referencia a De Gaulle ao falar da França, que eu nunca li Proust, nem Em Busca do Tempo Perdido.
 
Mas dia desses experimentei algo muito parecido, foi uma breve volta aquela fase onde as meninas tratam os garotos (e com razão) como leprosos. No meu caso a maquina do tempo que me levou até o pátio da escola novamente foi algo menos refinado que um bolinho francês, mas nem por isso menos prejudicial aos dentes e a diabetes: A pipoca Pippo’s, sabor bacon. Peguei-a no caixa do supermercado apenas para arredondar a conta e ficou dias esquecida na gaveta tal qual aquela tia para quem nunca telefonamos no aniversário. Mas eis que um dia, feito o parente indesejado, topei com ela pela casa e disse: Porque não? 
 
O cheiro de bacon ao abrir o pacote já foi a primeira cacetada, senti a gritaria das outras crianças no recreio, e nos primeiros grãos mastigados... Pronto, lá estava eu de volta ao colégio, com o buço suado de tanto correr, as tetinhas quase furando a camisa escolar e as meias na canela, cada uma de uma cor, numa vã tentativa de originalidade mas que como sempre acontece na maioria das vezes, só faz você ficar parecendo um retardado. 
 
A velha sensação de pertencimento. 
A velha sensação de ter amigos. 
A velha sensação de não saber dar nome as angústias. 
 
Numa cena famosa de Mad Man, o bonitão lá fala que em grego, a palavra nostalgia “significa a dor de uma velha ferida, um aperto no coração mais poderoso que a própria memória”. 
 
Uma dessas feridas que esse gostinho de porcaria me trouxe, foi do Gildo, gordo feito uma vassoura, dizendo que o porco ia me matar, ele sempre dizia isso quando eu comprava a porra da pipoca. Eu era meio lerdo e não sabia que o bacon é um derivado do porco. Achava que o bacon e o porco na embalagem do salgadinho não tinham ligações, igual os alertas por trás das embalagens de cigarro que vendiam na cantina do colégio (na escola de vocês vendia cigarro também, né?), eu pensava que o bacon era só um nome para um sabor e que sabores eram só um amontoado de coisas que davam gosto a outras coisas que não existiam também, tipo tutti-frutti, tipo... A infância também.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

NO PRINCÍPIO ERA O LIKE

("Agora eu sou trader também!")

 

Na citação erroneamente atribuída a Zygmunt Bauman, “quem gostou bate palma, quem não gostou paciência”, podemos interpretá-la como um claro afago sobre os perigos das redes sociais e dos influenciadores digitais nestes tempos de chinelagens liquidas.

Portanto, pensando nisso e vendo o movimento favorável as idéias erradas que se solidifica no Brasil desde 2013; aliado ao falso moralismo ampliado pelas redes sociais acrescido pela pandemia do Covid-19, que reforçou nossa descrença pelo próximo e enterrou de vez o brasileiro como figura empática e harmoniosa; resolvi me antecipar e criar um novo conceito em amigo virtual/viajadores na maionese/influenciador digital chamado Deposito Individual de Amigo Zero a Esquerda Para Atrair Masoquistas ou, D.I.A.Z.E.P.A.M.

Trata-se na verdade de um case em forma de homo sapiens onde você poderá destilar seu ódio à vontade, sem precisar disfarçar sua indiferença para essas misturas de SBT com aluno mais popular da escola, diminuindo sua ansiedade nas redes sociais. Não guarde mais para si tal sentimento de ódio, nem se deixe abalar pelos fãs com problemas de leitura cognitivas ou carência extrema. Vamos te livrar de um câncer real criando câncer um virtual, em diversas aventuras como esquemas de pirâmides financeiras, permutas em dentistas recém-formados e extorsão em comércios locais. Iremos quebrar a quarta película do celular e tocar em seu coração (com distanciamento social, é claro).

Nosso homem-produto irá atuar não só em posts com discursos pomposos e fotos que não condizem com as legendas edificantes. Também haverá muita falsa humildade e festas em meio a crises, pandemias e tragédias mundiais. Alheamento da realidade é tudo para você curtir nossos influencers. Daremos não só voz, como tapas e empurrões nas pequenas humilhações em forma de caridade em regiões de extrema desigualdade social, nosso amado nordeste agora não mais vai precisar exportar fascistas e picaretagem do sul do Brasil. Afinal, aproveitador a gente faz em casa, diminuindo assim os custos com logísticas e traduções de discursos.

E o melhor é que você também pode ser um.

Link na bio.

 

domingo, 13 de dezembro de 2020

CHURRASCARIA SAL E MIRAGEM

(Zhiyong Jing, sobre obra de Edward Hooper)

 

-- Oxe... E não é que a porra da carne é invisível mesmo!

Já escaldado de ouvir esse tipo de comentário desde que o patrão adotou esse tipo de “carne que só os inteligentes conseguem ver e saborear”, o garçom mantêm sua expressão neutra a cada novo frequentador. Ele sabe, melhor que ninguém, que o melhor elogio a casa é o retorno do cliente. Somente ao terminar de dispor os acompanhamentos na mesa é que ele sorri e enquanto desliza a mão rente ao espeto vazio diz que o sabor do churrasco invisível é de fato muito marcante: Experimentem! Qualquer coisa, meu nome é Samuel; ao seu dispor.

O cliente olha para sua esposa e esbanjando a típica praticidade da espécie vai logo se servindo dos acompanhamentos: Batata frita, arroz, feijão, maionese... Invisíveis. E quando por fim fez uma mímica de cortar a carne, exclama para a mulher e para o garçom:

-- Realmente é bem macia! – e ao colocar o naco de nada na boca, solta: E... De sal também está ótima!

Desde que essa novidade foi lançada no cardápio da antiga Churrascaria Tempero Gaúcho, comentários como esse são tão freqüentes nas mesas quanto a reclamação pela cobrança dos 10 por cento e o couvert artístico do cantor. O famoso Churrasco Invisível, uma iguaria que já fez com que a churrascaria tivesse não só que destinar toda uma parede para pendurar os inúmeros prêmios que ganhou, que vão desde organizações ambientais pelo consumo consciente de carne até o de publicações renomadas do setor empresarial como a revista “Pequenos Pênis, Grandes Negócios”, como também teve de mudar de nome, agora conhecida nacionalmente como Churrascaria Tempero Invisível.

A história de sucesso, recontada sempre nessas publicações empresariais com certos floreios e palavras de grandeza, começou de fato quando o digital influencer Galeguinho das Encomendas fez uma visita surpresa ao restaurante. Galeguinho, doido para meter o famoso Cartão @ (eufemismo para comer de graça em troca de divulgação em seu instagram), chegou acompanhado de seu séquito composto por anões, gagos, homens obesos, mulheres voluptuosas e outros com manias de grandezas e delírios psicóticos considerados “engraçadinhos” por parte de seus milhares de seguidores. Sacando o celular assim que passou da porta, e já filmando um stories dizendo que estava na melhor churrascaria do nordeste, Galeguinho deu uma gravata no pescoço do primeiro garçom e esbravejou mantendo-o o pobre serviçal de refém: Agora quero falar com o gerente!

Já se antecipando a confusão e temendo o prejuízo em troca da divulgação não solicitada, o filho do dono da Churrascaria foi até Galeguinho negociar alguma permuta e a soltura do garçom. O influencer disse que estava com o dedo no gatilho do botão enviar e que dependia dele a glória ou a ruína do negócio: É só você liberar do bom e do melhor para mim e para a equipe aqui, disse apontando seus satélites; argumentando ainda que não só meus milhões de seguidores podiam ver aquilo, como também os seguidores de cada um daqueles pobres diabos que o acompanhavam em farras e postagens pelo nordeste. O gago da trupe de Galeguinho, do nada, começou a imitar uma sirene de ambulância; o gordo sem camisa começou uma dança que segurava a genitália; os anões batiam cabeça e as mulhres, bom, elas apenas sorriam. A situação era tensa.

-- Tá bom, tá bom – gritou o filho do dono, naquele stories que mudou tudo – hoje vocês vão comer a melhor carne de Alagoas!

Laurito Pederneiras, herdeiro da Churrascaria, formado em manutenção de celulares Android, não é o inventor da receita, isso temos que admitir. Após acalmar os ânimos no salão, ele foi até a cozinha e pediu que o churrasqueiro preparasse picanhas, filés e costelas. Porém, o churrasqueiro com salários atrasados, pediu que o chefe o acompanhasse até a câmara fria do estabelecimento. Lá, limpou as facas de corte e as tabuas e em seguida se pôs a trabalhar no nada. Por fim, explicou tudo aos garçons, como deveriam apresentar o prato e como agir. Meia hora depois, Galeguinho ao ver os dezoito espetos vazios em cima da enorme mesa, baixou os óculos escuros e exibindo os olhinhos miúdos de cigana obliqua e de ressaca, brandiu:

-- Que porra é essa, meu patrão?

-- Apresento-lhes, o churrasco invisível. – Disse o churrasqueiro, antecipando-se ao dono da Churrascaria. – É uma carne que somente quem entende de carne assada é capaz de experimentar.

-- Eu sei, meu patrão, tô reclamando só dá quantidade, será que dá pra esse povo todo? – Retrucou Galeguinho, para não ficar por baixo.

A partir daí, com a ajuda do público de pessoas como Galeguinho das Encomendas, o sucesso foi estrondoso e a Churrascaria expandiu seu cardápio, não tinham mais a Picanha Argentina, mas sim a Picanha Invisível Argentina, e o feijão tropeiro, como dizia o cardápio, era rico em nuances e temperos que não existiam. O balé de carnes assadas chamado de rodizio não parava, garçons percorriam o salão de cabo a rabo, dia e noite, voltando com os pratos e copos mais limpos do que se tivessem saído da fábrica.

Agora a churrascaria podia atender não só veganos, vegetarianos e gente paranóica com limpeza e que jamais havia comido fora antes, como também o publico fitness delirava com tão baixas calorias dos pratos ali ofertados. E os preços também eram irresistíveis a todos os bolsos. O negócio era uma febre e como tudo que é sucesso, logo atraiu imitadores e se primeiro a concorrência caiu de pau, logo passou a copiar o modos-operandi da Tempero Invisível. Vários negócios proliferaram com esse tipo de receita, foram criados franquias e slogans do tipo: "Aqui o bife do vazio é de verdade!". Ainda assim, a desconfiança existia e outros empresários, com preguiça de operar o ar e o nada, denunciavam a vigilância sanitária, porém os fiscais não encontravam nada além do brilho nos pratos e da higiene impecável dos banheiros. E quem mais, além dos eternos clientes insatisfeitos podiam apontar o erro, mas estes, com medo de serem taxados de burros ou não-entendedores de carne, logo se calavam ou evitavam a casa. Talvez as crianças, as únicas que podiam de fato apontar o espeto liso e dizer para seus pais que não tinha nada ali, seriam capazes de tão sinceridade, porém estavam todas muito distraídas na brinquedoteca da Churrascaria, pulando e se atirando no chão em camas elásticas e piscinas de bolinha que não existiam, ou mesmo tentando adivinhar a senha wi-fi de mentira.

Durou alguns anos esse tipo de empreendimento e até o presidente Jair Messias Bolsonaro se arvorou para si alguns méritos, como o de ter criado leis que facilitavam esse tipo de comércio e o do emagrecimento da população. Então um dia, mudou o presidente, a economia melhorou, as pessoas voltaram a ter poder de compra e passaram a comer carne de verdade outra vez. 

Fim.


terça-feira, 8 de dezembro de 2020

EMPREENDEDORES

 

(Zhiyong Jing)

1.

Xavier está enxugando os pratos de casa e mais uma vez se pergunta por que nasceu com aquele dedo tão podre para negócios. É dono de uma vidraçaria pequena, ali pelas bandas do Tabuleiro dos Martins; porém, tal qual um evangélico, ele nunca superou o passado. Tudo porque em 2007, com a popularização dos planos de internet banda larga no Brasil, ele resolveu lançar um site para seu incipiente negócio. Sua idéia era simples, criar um site da vidraçaria onde os eventuais clientes pudessem ver seus trabalhos, como box para banheiros, portas de corrediças e salões espelhados; e também seria uma boa ferramenta para solicitarem orçamentos e contratar seus serviços. Tudo correto se o problema não fosse mesmo o azar, ou a segunda função primordial a que a internet domiciliar é utilizada: A pornografia. Talvez uma leve pesquisada no Google tivesse ajudado Xavier, pois no mesmo ano bombou no mundo inteiro um site de vídeos eróticos cujo endereço virtual era semelhante ao de sua loja, exceto por uma letra. Xavier não recebeu nenhum comentário elogioso no mural de recados. Em dois anos pagando domínio do site sua caixa de entrada lotou apenas de comentários de onanistas furiosos por verem suas excitações freadas graças ao site da sua vidraçaria, a Xvidros.com.

 2.

Orkut Buyukkokten, o criador da famosa rede social muito popular no começo de 2000 no Brasil e na Índia – isso eles sempre fazem questão de frisar, não sei bem porque, talvez porque vejam semelhanças culturais em ambos os países, já que está sempre lá “popular no Brasil e na Índia” –, esteve em Porto Alegre recentemente para participar de uma feira de empreendedores e coisa e tal, e como não podia deixar de ser, tentou derrubar uns corpinhos através do Tinder se valendo de sua popularidade no país (e também na Índia, é bom lembrar). O que Orkut não sabia era do espírito de porco dos Brasileiros (e dos indianos, vai saber) e da desconfiança geral que rondava o país. As pessoas, vendo sua carinha pelo raio de proximidade do bairro boêmio da Cidade Baixa, denunciaram seu perfil como fake e o Tinder retirou do ar sua conta. Talvez mal humorado por ter vindo ao Brasil e não comido ninguém (quem sabe na Índia tivesse mais sucesso), o senhor Buyukkokten foi bem antipático com alguns brasilindianos durante a feira de negócios, dando declarações desdenhosas até com seu maior sucesso: “Creio que o Orkut só ficou popular nesses dois países porque a maioria das pessoas só possuíam internet discada, e, bom, estavam acostumadas com a lentidão” – disse referindo-se a demora em carregar certas páginas, devido ao pequeno servidor que hospedava seu site na época do lançamento.

3.

Odeio profundamente estabelecimentos comerciais cujos donos são a cara, o logo e o garoto propaganda do lugar. Será que é preciso mesmo que essa lanchonete, eu penso, seja um museu vivo desse empresário? Minha mãe também é comerciante e eu passei a vida lidando com outros donos de estabelecimentos e outros filhos de donos de estabelecimentos e posso adiantar pra vocês que a maioria desse tipo, que banca o engraçadão no instagram da empresa, não vale nada. Minha mãe também divide comigo esse tipo de ojeriza a empresários ególatras e tem uma frase muito boa sobre: “Atender no balcão ninguém quer, né?”.

4.

Meu pai certa vez disse que estava abrindo uma Churrascaria na Barra de São Miguel, litoral sul de Alagoas. Na época, eu com 12 anos, pensei: Massa, vou tomar banho direto na praia e ter vida de playboy. Mas a real é que o único contato que tive com água nesse período foi na pia de lavar copos, função a que fui destinado durante aquele verão. Não tomei muitos banhos de mar, nem ganhei qualquer dinheiro, mas jogava bola todos os dias com os garçons no estacionamento do restaurante. Quando chegava um cliente, era aquela beleza, funcionário indo atender a mesa todo esbaforido, suando ou mesmo xingando os colegas de time pelo gol tomado. Quando chegou o inverno, como sempre acontece em estabelecimentos praianos, fechamos as portas.

5.

Quando criança, ao ser indagado na escola sobre a profissão dos meus pais, em geral eu mentia. A real é que eu não sabia o exato nome daquele ofício que eles exerciam e na minha cabecinha, dizer que eles eram donos de algo, podia parecer que éramos ricos, e isso eu sei que não éramos pois meu pai nos tratava mal o suficiente pra sabermos disso, ao contrário de suas amantes. Às vezes dizia para as outras crianças da sala que ele era encanador e que minha mãe era secretária de um médico. Uma vez perguntei a minha mãe qual era a profissão dela: Comerciante, ela respondeu. E eu fiquei pensando: Olha só, ok. Que bonito. Bonito nome para quem assa carne e cobra por isso. Aí um belo dia soltei na sala de aula, ao ser questionado numa dessas rodas sobre profissões, falei: Meus pais são comerciantes. A risada foi geral.

6.

A mesma coisa era em relação ao nome do meu pai quando professores perguntavam como ele se chamava. Eu dizia Antonio. Meu deus, quantas vezes pedi que meu pai tivesse um nome normal, tipo Francisco, Pedro ou Célio. Ou pelo menos na minha cabeça algo normal era algo que não chamasse tanta a atenção, um nome que dali a dois minutos todo mundo se esquecesse e só servisse para mostrar que eu não era filho adotado ou nascido de um ovo. Donatilio era o nome do meu pai. O apelido dele era Eca. Seu Eca. Porque diz a lenda da família que ele era uma criança enjoada, que reclamava de tudo. Para completar o pacote bulliyng, ele era obeso. Bem gordão mesmo. Parada mórbida. E o Seu Donatilio dizia de mim para os amigos, desconhecendo a força de seus genes na própria cria, “esse meu mais novo é meio estranho das ideia, meio louco”. É pai, talvez se o senhor ajudasse, emagrecendo ou mudando de nome. Mas é, tá pra nascer coisa que gere mais literatura do que ter pai torto.

-- Cadê o filho do Seu Eca, da Churrascaria? – Perguntou uma vez a professora da sexta série que o conhecia, no primeiro dia de aula.

Obviamente eu não levantei a mão.