quinta-feira, 29 de setembro de 2016

MÚSICA, MAESTRO!


(Marcello Mastroianni, em Divorcio à Italiana)



Acho que todo mundo queria ser amigo do Marcello Mastroianni, não é? Do Chico Buarque, eu também queria ser amigo. Curiosamente do Graciliano Ramos, não. Nem tampouco queria ter sido amigo de Clóvis, um professor de música aqui da rua. Mas a verdade mesmo é que a única coisa que nos podemos escolher (ao invés dos amigos, dos talentos e das dores) é a série que queremos assistir, mas até isso tem limite, e esse limite é a ganância dos produtores, que quando entra em cena, resolve esticar suas obras até o último centavo da audiência. 

Creio que é por isso que só vejo a primeira temporada delas... Mas a vida é mais comprida, então aguardemos os brindes surpresas. Ou os easter eggs. Ou as participações especiais. Com isso de levar a vida, lembro de novo de Graciliano Ramos, esse velho chato e imprescindível, que quando perguntava “como vai a vida?” e alguém lhe dizia: “Vou levando”. Ele respondia, com um sorriso matreiro na boca:

-- Vixe, se tá ruim para mim que vou metendo, imagine para você que vai levando...

(Toda vez que passo pela estátua dele, só me vem isso na cabeça: “Se tá ruim para mim que vou levando, imagine para esse daí que é estátua e tem de ganhar a vida tirando selfies...”). 

Na verdade, eu não queria nem estar aqui bancando o literato para vocês, o que eu queria mesmo era tocar guitarra, mas a vida me colocou no caminho um Graciliano Ramos piadista como professor de música, o tal Clóvis, que após a primeira semana de aula, vendo que ali não sairia nenhum Jimmy Hendrix, deu o seguinte conselho para a turma:

-- Sabem o que é bom para amolecer os dedos no trato com o violão?

-- O que professor? – perguntávamos, todos ávidos pelos seus ensinamentos de músico de barzinho.

-- Lavar louça!

E lá íamos, para sua cozinha, se atracar com pratos, copos e talheres, enquanto o professor ficava falando “que a música era não sei o que lá de não sei o que...” dedilhando um de nossos violões, vendo como cuidávamos de sua louça e pedindo que não molhássemos muito o chão.

GRÁTIS, NA LEITURA DESSA CRÔNICA: UMA LIÇÃO DO TIO NICANOR PARRA

“O fazer artístico é basicamente:
1% Inspiração
2% Transpiração
97% Sorte”

Em outra dessas aulas sobre como tirar gordura de panelas que vinham de brinde com as aulas de violão, rimos bastante ao imaginar o que diabos o professor Clóvis pediria ao inocente que buscasse aulas de flauta doce.

E NA LEITURA DESSE TEXTO, ADQUIRA TAMBÉM: UMA LIÇÃO DE MORAL:

Sempre que você se martirizar por não ter os amigos ou os dons que pediu a deus na rifazinha da vida, pense no baterista que está até hoje tirando a poeira dos tapetes do professor.

Cid Brasil 

terça-feira, 6 de setembro de 2016

O MAL É O QUE SAI DAS CAIXAS DE SOM DAS LOJAS DE DEPARTAMENTO



(Eduardo Salles)


“É preciso que o artista atue de forma que a posteridade seja levada a crer que ele não existiu”. Assim Gustave Flaubert, o homem-pena francês, definiu a profissão de DJ de loja, essa figura anônima por trás da trilha sonora que embala compras, dividas e furtos. 

Dono de uma das profissões mais antigas do mundo, o DJ de loja resiste bravamente atirando suas pedras sonoras nas vidraças de nossas rotinas e das agencias de publicidade moderninhas que tentam roubar seu lugar vendendo esse serviço num case gourmet de bem-estar social & experiência para empresários desinformados e insensíveis. 

Entre as gôndolas e o alheamento do público, o DJ de loja trabalha de mãos dadas com o anonimato tal qual a máxima Flaubertiana; ou tal qual um Banksy das farinhas de roscas ou um Thomas Pynchon da seção de cosméticos ou ao menos igual ao pichador urbano que espalha pela cidade as preferências sexuais do deputado Alberto Sexta-Feira – outro exemplar artista da província.

A figura que é paga para elaborar a trilha sonora do local com a maior concentração de donas de casa por metro quadrado de Maceió deu, na tarde desta terça, uma demonstração de ousadia e inteligência no pout-pourri escolhido; uma inteligência que se não é guiada pela loucura ao menos é movida a INSS e seguro desemprego. Apesar do alheamento e da aparente caretice de seu público no supermercado, ele conseguiu, mais uma vez, imprimir seu CPF em nossas mentes movidas a crédito e débito. Foi na fila, precedido por três simpáticas sósias de Marechal Deodoro da Fonseca, que escutei explodir pelas caixas de som um reggae que dizia assim: 

“Você pode fumar baseado/ baseado em que você pode fazer quase tudo/ Contanto que você possua/ mas não seja possuído”

Mais assustado do que surpreso por ainda existir o conjunto intitulado Cidade Negra foi ouvir essa música passando despercebida pelos ouvidos do habitual público presente.

“Porque o mal nunca entrou pela boca do homem/ Porque o mal é o que sai da boca do homem”

Mocinhas na sessão de material escolar, mulheres adquirindo produtos de beleza ou evangélicos buscando bíblias que combinassem com seus conjuntos sequer esboçaram um mísero risinho chocho ou um tímido: “ave cristo!” enquanto seguia o som:

“Você pode beber baseado/ baseado em que você pode beber quase tudo/ Contanto que deixe um pouquinho/ um pouquinho pro santo”

Sequer notei gerentes ou seguranças correrem até as os fundos da loja para impedirem aquele momento de contravenção do selecionador musical, que certamente podia ser um estagiário ou o moço do almoxarifado; afinal, o artista é também um anarquista de primeira, um detonador dos pilares do capitalismo. 

Claro que podia ser somente uma genial molecagem aquilo ou o mero acaso do selecionador randômico do computador se logo em seguida não começasse a tocar É Proibido Proibir na voz de Caetano Veloso, como confirmação de que ali, por trás da trilha sonora da Casa Vieira, estava uma inteligência rara e humana e não a ingenuidade do Windows Media Player.  

Ao fim dos seis minutos redentores havia lágrimas nos meus olhos e pensei que mais injusto do que maçãs a 11 reais o quilo, ou mais injusto do que desvirtuar citações de monstros da literatura, era somente o carinho com que as velhas maconheiras a minha frente seguravam os pacotes de pão de forma e os potinhos de nutella que certamente iriam por fim as suas laricas de fim de tarde.

Cid Brasil

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

TRUE DETECTIVE



(Greg Ruth)


-- Pronto!
-- Alô, o senhor é o famoso Detetive Luiz, aqui de Maceió?
-- Sim, pois não...
-- Eu gostaria de...
-- Mulher traída? Filho com drogas?
-- Não, pelo amor de deus é que...
-- Funcionários trapaceiros?
-- Não, não!
-- Encontrar alguém? Cidade pequena tem dessas dificuldades.
-- Não, Seu Detetive, não é nada disso.
-- O que é então, meu filho? Eu estou trabalhando.
-- Eu gostaria de saber como é a vida de um detetive, se o senhor age sozinho, se fez curso a distância, se não é broxa...
-- Quem aqui é broxa, rapaz?
-- Calma, Detetive, calma. Eu iria perguntar se não broxANTE ser detetive em Maceió e só correr atrás de mulher traída e marido putão, essas coisas de uma cidade como Mac...
-- Meu filho, só um momento...

(Sons de disparador de flash, vários tlacs, tlacs, tlacs. Detetive Luiz parece estar tirando fotos; ao fundo, barulho de carros numa avenida, de repente ele diz alô como se estivesse me atendendo de novo enquanto continuam os tlacs, tlacs de sua câmera)

-- O senhor está no meio de uma investigação agora, detetive?
-- Olha, é difícil explicar...
-- Sigilo, não é?
-- Sim. Mas você é jornalista ou o que, meu filho?
-- Não, não, sou escritor. Sabe, qual é? É que estou aqui num café e vi seu número aqui nos classificados do jornal, então queria só matar tempo enquanto minha namorada não chega.
-- Num café? Você está num café?
-- Sim, estou, mas como eu estava dizendo, seu detetive, eu queria saber como é a vida de um investigador aqui na cidade; saber se tem aquele charme todo dos livros...
-- Sei... Ô meu filho, esse café que você está não seria o Fran's?
-- É sim, por quê?
-- ...
-- Detetive?
-- Oi.
-- O senhor ainda está aí?
-- Aqui aonde? Está me vendo, por acaso?
-- Não, seu Detetive.
-- Meu amigo, você por acaso está de óculos escuros e vestindo uma camiseta vermelha?
-- Sim, Seu Detetive, estou!
-- ...
-- Espera aí, não é o senhor aí dentro de um carro preto?
-- Puta merda...
-- O senhor está me investigando, Detetive?
-- Aí, caraío! Não, meu amigo, tô sendo pago para seguir esse moço aí da outra mesa, esse conversando com uma loira. Na mesa do lado.
-- Ah...
-- É...
-- Mulher, traída?
-- Sim.
-- Posso ajudar em alguma coisa, detetive?
-- Sim, mude de mesa que nessa aí você está me atrapalhando o ângulo.
-- Cidade pequena, não é?
-- Ô...

Cid Brasil