domingo, 10 de agosto de 2014

RAUL


(Henri de Toulouse-Lautrec)



Meu amigo Euclides Portugal, detetive e fã de literatura policial, me contou essa história, ele diz:

Era meu pai quem o chamava de Raul Seixas e eu, por conseguinte, o chamava de Doutor Raul. Ele não se chamava Raul e sinceramente duvido que tenha concluído a faculdade de odontologia. Tinha um enorme cavanhaque preto, que só cobria nas primeiras consultas, talvez para conquistar os pacientes, demonstrando assim uma higiene da qual não era amigo enquanto escondia seus dentes de rato (tal qual o verdadeiro Raul), coisa rara e estranha (mais estranho do que raro) para um dentista, eu pensava, e hoje penso: Mesmo para um dentista do interior, ou como diz aquele poema de Nicanor Parra, onde ele fala que o “verdadeiro pensamento não brota na boca, mas sim no coração do coração”, eu diria que aquele dentista vivia no interior do interior, para onde no começo eu ia enganado, com promessas de presentes, livros e passeios dos quais a melhor parte da viagem era sempre a volta: Vamos ajeitar esses dentes estragados, dizia meu pai com toda a delicadeza que lhe era habitual.

E me deixava na porta do consultório do Doutor Raul enquanto ia fazer alguma coisa mais importante do que segurar na mão do filho que tremia ouvindo o som da broca metamorfoseado numa motosserra. Nunca havia ninguém na loja de tecidos que abarcava aquele prédio, e eu entrava por uma portinha lateral, passava por corredor ilustrado por outras portas fechadas e ia descascando a parede no caminho, querendo voltar, mas voltar para onde? Eu estava no interior do interior. 

Próximo! Dizia o doutor Raul, que não possuía secretária, embora houvesse birô, papéis, um telefone, canetas e um porta retratos, com foto de uma gorda abraçada a um menino. Estranhamente, apesar de escutar o som da broca e dele conversando com alguém, nunca havia vivalma no consultório do infeliz. Creio que ele passava as tardes ajeitando os próprios dentes, ou os de um fantasma, ou lendo o manual dos dentistas autodidatas. Não sei. Ás vezes ele estava, com muito afinco, envolvido com uma de minhas caries e só então lembrava que não tinha lavado as mãos ou posto as luvas, e suas unhas era as de quem castigava as cordas de um violão. Também não me esqueço de uma mesa que ele tinha no consultório que servia de armário e suporte para milhares de caixinhas de remédio, como se ele tivesse acabado de assaltar uma farmácia ou recebesse dos pacientes pobres medicamentos fora da validade. Hoje, não é difícil imagina-lo experimentando cada uma daquelas substâncias para ver que barato elas davam, mas na época eu só achava esquisito e engraçado, pois era engraçado vê-lo virar-se na cadeira e bater com o cotovelo nas caixinhas fazendo-as cair feito domino. 

Mas antes que você pense mal, ou tenha uma impressão errada do doutor Raul, saiba que ele não era uma pessoa ruim como sua profissão pode se fazer supor. Era só atípico, e hoje vejo que cada um tem o dentista ou o pai, e eles os pacientes e os filhos que merecem. Eram boas pessoas.

Cid Brasil