domingo, 28 de julho de 2013

PELA ÚLTIMA HORA



(William Mebane)



Perto das cinco da tarde de quase todos os domingos paro de escrever o que estiver escrevendo, pois lembro que ainda não almocei, então tomo um banho, boto uma camisa limpa e antes de ir almoçar, fico errando pelas ruas de carro até o PF que me espera.


Tomo sempre os caminhos mais longos.


Um, é pelo Bairro do Bebedouro, onde entre usas ladeiras e casas espremidas vou pensando nos personagens e no próprio Graciliano Ramos; sempre presto atenção na sede dos Alcoólicos Anônimos com suas paredes gastas e sua porta carcomida pela umidade... Tenho imensas vontades de descer do carro ao passar em frente ao mirante, mas nunca faço, talvez por timidez ou fraqueza.


No entanto, o caminho que mais gosto é outro. Por outro extremo até o Tabuleiro de minhas fomes.


Pela Via Expressa, ao entrar na Avenida Rotary, sigo contando suas bancas de revista, padarias e farmácias fechadas e começo sempre a pensar no romance que tanto quero escrever: Sobre uma história de amor que não se realizou, sobre um personagem que pensa e reprisa todos os dias a última vez em que viu uma mulher... Será uma história cheia de reticências, como na vida...  Então um pouco antes de entrar na Avenida Menino Marcelo, me vem à mente uma determinada moça que deve passar por essa rua diariamente.


Ao passar por dois prédios novos, já quase esquecidos, quase invisíveis, todas as vezes que os vejo tenho a heresia de imaginar que alguém dentro de algum daqueles apartamentos estará lendo alguma de minhas crônicas. 


Assim como o caminho pelo Bebedouro, nesse a um ponto falho também, um lugar em que penso em parar todas às vezes, mas apenas penso: É uma pequena banca de revistas chamada ‘Santa Quitéria’, no bairro da Serraria, tenho vontade de entrar lá 15 anos depois e comprar um algum gibi do Cascão ou do Chico Bento novamente, só para ouvir a risada do dono da banca, daquele senhor cujo nome eu já não lembro. Evito, pois tenho medo de ouvir de algum filho ou de um novo dono, que o senhor de bigodes brancos que aos sábados sempre errava o meu troco por estar levemente embriagado, já não sorri mais. 


E sigo... Deixando para trás a mais nova lembrança semanal dos rostos dos meninos que jogavam fliperama comigo num boteco também nem existe mais. E sigo... Deixando para trás também a Serraria com seus apartamentos de corredores escuros e melancólicos que nunca visitei; deixando para trás a casa daqueles meninos que julguei como sendo as melhores pessoas do mundo em todos os sábados a tarde que ali passei - Mesmo que nunca tenha visitado nenhuma de suas casas com corredores escuros e melancólicos. E sigo...


Digo que sigo, mas é mentira, pois ainda penso nessas pessoas e mais uma vez irei lamentar, como na semana retrasada, por não ter escrito uma crônica falando sobre eles quando já estiver passado pela banca...

***


Gostaria de escrever mais. Mas já são quatro e vinte e três da tarde: Hora de ir.


Cid Brasil

quinta-feira, 18 de julho de 2013

ALGUÉM QUE NÃO TINHA TEMPO


(Salvador Dalí)



Era alguém.

E sendo assim, um dia percebeu seu relógio parado: Apontando dois caminhos: Eram seis horas. Antes dali e das seis sempre acontecia de esquecer-se das horas e dos dias, como todo mundo de segunda e sexta-feira. Naquele dia – O único que chamaria de dia até uma quarta no futuro, não ousou trocar a bateria. E ele, que era alguém, passou a não querer saber mais em qual dia a vida estava. Pelo menos naquele em que se encontrava de relógio morto. No outro também não quis saber, e também no outro e no outro... 

Trabalhava carimbado papeis, mesmo sem querer saber o nome dos dias, foi indo trabalhar a cada vez que acordava, até perder seu emprego quando imaginou estar em plena folga. 

E foi se distanciando dos meses e daqueles de espírito prático aos poucos. 

Um dia ou tarde ou noite, enquanto almoçava, ouviu o telefone tocar: Era sua mãe lhe desejando feliz ano novo de madrugada, ainda mastigando ouviu os fogos de artifício do outro lado da linha e teve receio de perguntar qual era o ano velho e qual o novo.

Seu calendário na parede virou caderno de desenhos: Fez doze mosaicos.

Uma tarde ou dia ou noite, achou outras folhas em branco pela casa. E ele, que era alguém que escrevia apenas entre os vãos do tempo e dos metrôs, passou a ser alguém que apenas escrevia. Seus sonhos também se tornaram iconoclastas do tempo com a falta de tempo, e assim passou a não dividir mais a vida entre dormir e acordar. Os dias que já não eram mais dias passaram a se confundir ainda mais: Agora com as mentiras que ele tatuava no papel. Chamava tudo isso de viver.

(Para aqueles de espírito prático, que necessitam de fatos: Ele estava vivendo de seu seguro desemprego). 

Era alguém.

E mesmo assim, precisava de um dia de ontem para consultar, para saber o antes e o depois dentro das lembranças. Pautava-se pelas moças que conheceu e pelos livros que leu, quando tinha de recorrer ao passado: Começou por lembrar que o ‘Pequeno Príncipe’ lhe foi emprestado por Miriam dona do primeiro beijo; chegou até Sandra e os pecados por ela cometidos, como os de ler ‘O Alquimista, O Zahir e Onze Minutos’ e o diário de um mago de espírito prático... ‘Lolita’ foi Mariana, mesmo ela achando que ‘Lolita’ era o nome de um docinho; o ‘Encontro Marcado’ o levou a Jasmim; Capitu, Dulcineia e Carlota foram lidas em companhia de ‘Dom Casmurro’, ‘Dom Quixote’ e ‘Werther’... Francisca tomou o seu Neruda emprestado, e como na música: Nunca leu...

Algumas reticências depois, enquanto estava escovando os dentes e consultando esses fatos, se perguntou se ele próprio não seria criação literária de outro alguém. Passou a escrever uma espécie de diário no futuro, e só punha ‘fim’ no que ele chamava de ‘crônicas’ naquela espécie de diário da frente, quando estava com muito sono.

Outras pessoas, as que mantinham o relógio funcionando, mas que não eram apenas de espírito prático e sim de espíritos com cara de sexta-feira, usavam expressões sem a ironia dos de espírito prático quando o viam:  “Nossa, você está bem, parece até mais orientado...”.

A vida nunca havia sido tão rica quanto aqueles dias em que se livrou do nome dos dias e da pilha dos relógios; reutilizou palavras obsoletas: Domingo tinha virado uma espécie de sentimento; batizou as pessoas de espirito prático, com o nome de ‘os de segunda-feira’; os livros na estante passaram a ser memoriais e os de amanhã os que iria escrever; o ontem usava quando queria contar coisas antes do seu nascimento. O relógio agora era um oráculo e não mais um patrão com suas setas para frente e para trás.

Essas páginas em branco duraram quatro ou cinco ligações de sua mãe lhe desejando ‘feliz ano novo’. Foi na sexta ou sétima ligação de novo ano, entre um bife à milanesa e um alô que se perguntou se não estava ficando louco. Foi a sua ruína: Pois descobriu assim o dia em que estava.

Os de segunda-feira vibravam do outro lado da linha e dos dias.
Os de sexta-feira, bom... Estavam curtindo o feriado e não ligavam para alguém que não estivesse nos feriados.

Era quarta-feira. Quarta-feira. Quarta-feira...

Para muitos apenas mais uma na vida de alguém...

Nessa mesma quarta-feira, há meia noite do primeiro dia de 2021, se viu sem bateria... E já tendo tomado ciência novamente do mundo e de suas engrenagens, percebeu que tudo não passou de uma epifania entre a sala e o banheiro. Olhou o relógio mais uma vez, e os dois ponteiros apontavam para frente. Escreveu dois minutos depois uma historinha meio fábula, meio crônica sobre alguém que se esqueceu do nome dos dias e dos meses... Na historinha meio fábula, meio crônica que escreveu o personagem principal tinha um relógio parado que o fez funcionar melhor; na historinha o personagem principal, que era alguém, nunca atendeu ao telefone enquanto almoçava nas noites de ano novo, e se perdeu para sempre.

(Os de segunda-feira nunca entenderam aquele final).


Cid Brasil

domingo, 14 de julho de 2013

CRÔNICA DE BOLO DE LEITE



(Guido Pigni)


Essa crônica deve ter o ritmo de clarinete do Benny Goodman em Good-bye. Ela deve ser lida também com uma sensação de domingo ao fim de tarde, mesmo que seja lida numa segunda de manhã ou numa quarta de angústias tolas.  Deve ter principalmente esse sentimento. 


Quero também que ela soe como e-mails atrasados para os amigos, ou como aquelas conversas dentro de ônibus com desconhecidos que nos fazem perder o destino. – Pois escrever para mim é isso: É levar os amigos juntos para dez anos atrás, ou estar com quem não conheço debaixo de um toldo numa cidade esquecida. 


Deve falar com um sabor distraído, como o bolo de leite da loja de conveniências próximo a minha casa. 


Eu digo que aquele bolo com café cura qualquer depressão. Talvez não queira chegar aí, também não é preciso ir comer o tal bolo de leite. Eu pretendo que essa crônica sirva como bolo de leite para cada um, mesmo que o bolo de leite de cada um seja encontrado numa covinha de alguma bochecha, num roçar de pernas entre lençóis, numa mensagem que apita no celular, numa cena dentro de algum filme de Truffaut ou entre Marcello Mastroianni e Anita Ekberg na Fontana di Trevi; em qualquer uma das 400 páginas de ‘Cem Anos de Solidão’, em alguns quilos a menos ou a mais, no cabelo que finalmente está comportado, na vitória do Flamengo sobre o Vasco – Ou vice e versa; no telefonema de meia hora, em oito horas de sono; no perdão finalmente aceito ou na desculpa pedida, na crônica escrita, no barulho de chuva que confunde os dias e as horas... Enfim, que cada um chame seu bolo de leite como quiser. Mas é esse sentimento que tenho a pretensão de atingir.


É um sentimento que Fernando Pessoa atingiu com a sua Tabacaria. – Desse quero apenas varrer a calçada.


Não quero pouco é verdade, mas quem escreve ou lê nunca quer: Quer de cara atenção (que já coisa demais), então apenas quero que essa crônica sirva de passeio e também bicicleta: Para os meus amigos, alguns amores e até um ou outro desafeto que desconheço.


Não espero que essa crônica mude a cabeça de ninguém, embora tenha mudado a minha. Até aqui eu detestava blogs por exemplo. Aqui, creio que todo mundo deveria ter um, e publicar regularmente; seria maravilhoso atravessar certas ruas com alguém querido ou viajar até Xapuri e descobrir se existe vida em Xapuri... Até as perseguições por aqueles a quem somos platonicamente apaixonados seria muito melhor.

Deve ter tudo isso nessa crônica-passeio que tanto falei... Se não tiver é porque ainda não consegui escreve-la. Gostaria muito que fosse uma crônica que nos fizesse pensar juntos leitor, ainda que por breves instantes de um gole de café, que existem momentos em que a vida não é tão triste.


Cid Brasil