terça-feira, 29 de março de 2016

VIDEODRAMA


(Videodrome, David Cronnenberg)



1.
Foi com Tony, meu primo, que assisti a Um Drink no Inferno, de Robert Rodriguez, pela primeira vez. A locadora era daquelas com mais poeira que qualidade nas prateleiras. O filme abre com uma estradinha perdida no deserto americano e logo em seguida é mostrado o interior de uma pequena loja de conveniências a beira da estrada. Há certa tensão nos diálogos entre o balconista da loja e o xerife local nesse inicio. E do nada, Quentin Tarantino travestido de bandido, sai de seu esconderijo e explode a cabeça do policial com um tiro preciso. Lembro do enorme espanto que tivemos nessa cena. Numa sequencia inverossímil logo depois, os bandidos queimam o xerife local com o álcool das garrafas nas prateleiras e o posto explode. Paramos aí de assistir, pois meu primo, então com sete anos, começou a chorar desesperadamente. 

2.
Falta de sensibilidade minha, já que o pai de Tony, meu Tio Fredo, era delegado da policia civil e sua mãe, Tia Berta, recém tinha sido admitida numa loja de conveniências num posto no Farol. Após acama-lo, dizendo que ninguém iria atirar no sei pai nem queimar sua mãe viva no emprego, voltei na locadora, devolvi o terrível filme, cedi as chantagens e locamos Xuxa Requebra. Talvez eu tenha influenciado diretamente na futura profissão do meu primo, que hoje é dançarino numa banda de forró. Ou talvez não, vai ver era só o filme errado na hora errada.

3.
Tínhamos dois videocassetes em casa e o meu passatempo preferido era gravar cenas da TV por cima das velhas fitas caseiras: Era um mix de Charles Bronson versus minha mãe fazendo bolos, dezenas de sequências mal filmadas da inauguração da nova casa com o Mel Gibson atirando para cima numa festa de Máquina Mortífera enquanto cantávamos os parabéns pra você para algum parente que já esqueci, mas que bem podia ser o Zacarias. Assim, boa parte da minha infância foi gasta assistindo televisão com dois controles remotos na mão e nada na cabeça, um destruidor dos arquivos da família.

4.
O papo de pai era que muito videocassete iria estragar a TV. A mesma conversa no quesito videogame e em relação a saúde dos meus olhos. O papo do dono de locadora era só o de rebobinar as fitas na devolução. E o papo de mãe era que não tocasse na gravação do seu casamento, pelo menos não naquela fita!

5.
Numa dessas incursões como DJ de imagens, acabei encontrando a tal fita e no lugar do padre perguntando se minha mãe aceitava meu pai como legítimo esposo, pus o Stallone Cobra dizendo que o bandido era a doença e ele era a cura. O baile e os desejos de felicidades dos convidados ficaram entremeados com a Carla Perez apresentando o Fantasia. Lembro que minha mãe chorou bastante ao ver o resultado, pois com minha intervenção, acabei por excluir seu pai da festa de casamento e aquele, disse ela, era o único registro dele que tínhamos.

6.
Outro dia marcante foi quando descobri uma função chamada “gravação programada” no menu do videocassete. Minha primeira atitude foi acertar os relógios da TV e do vídeo com o do canal 5 e deixar o Cine Prive e alguns peitos rosados invadirem a fita.

7.
Na manhã seguinte eu só faltava ter uma taquicardia de tão ansioso. Na verdade quase tive dois ataques: Um de ansiedade e outro de raiva ao dar o play e me deparar com vídeos institucionais da LBV seguido de uma mão vendendo joias e o logo da bandeirantes estático por cinco horas consecutivas. Só depois vim saber que os púbis cabeludos do Cine Prive eram apresentados somente aos sábados... Another time in TV, another wrong hour. Adjust your tracking...

Cid Brasil

quinta-feira, 10 de março de 2016

UM ROMANCE PERIGOSO


(Robert Walser)



Naquela obrigatória estante de livros perigosos, merece um destaque, ainda que a palavra destaque aqui seja empregada com muita vergonha, o romance Jakob Von Gunten, do Suíço Robert Walser – escritor dono de uma biografia pessoal também mui peligrosa.

Jakob Von Gunten é o nome do protagonista desse romance em forma de diário suspenso onde são relatadas as suas experiências no Instituto Benjamenta, uma escola de mordomos; ou talvez seja melhor dizer uma anti-escola, já que dia após dia só o que fazem é ensinar seus alunos a não esperarem muito de coisa alguma:

“Aqui se aprende muito pouco, faltam professores, e nós, rapazes do Instituto Benjamenta, vamos dar em nada, ou seja, seremos coisa muito pequena e secundária em nossa vida futura. As aulas a que assistimos visam sobretudo a inculcar-nos paciência e obediência, duas qualidades que ensejam pouco ou mesmo nenhum sucesso”.

O romance todo contém pequenas farpas em formas como está acima que também ferem a nós, reles mortais presunçosos; são agulhas que se caíssem nas mãos de qualquer simples estudante do ensino médio, ou de algum eterno universitário, resultaria no terror absoluto de pais (“quando se é jovem, um zero à esquerda é o que se deve ser, porque nada é mais pernicioso do que tornar-se alguma coisa muito cedo”) e mestres (“há muito tempo o mundo gira em torno do dinheiro e não da história”/ “não há nada que valha a pena almejar”).

E como sempre ocorre o contrário nesses casos, O Instituto Benjamenta de Robert Walser ajudou na formação de vários escritores como Elias Canetti, Enrique Vila-Matas e em especial um dos maiores, se não o maior, escritor (e aluno) do século XX: Franz Kafka. Certamente o Tcheco foi um excelente aluno invisível e repetente do instituto, principalmente quando lemos coisas como: “Só nas regiões inferiores é que consigo respirar”. Lemos e não acreditamos que Walser é o mestre de Kafka. Mas é.

Um livro perigoso que certamente foi um dos incendiados pelos bombeiros de Fahrenheit 451, de Ray Bradbury e proibido pelo Grande Irmão de 1984, de George Orwell.

Um livro que não estará nas bibliotecas mais próximas de você. O que muito deve agradar aos desejos de ocultação de seu autor (ao fim da vida Walser não só se dedicou a escrever microcontos como os fazia numa letra cada vez mais pequena), e apesar disso, peço a todos que sigam o conselho daquele outro resenhista: Comprem, aluguem, peçam-no emprestado, roubem-no; mas leiam!

Cid Brasil

segunda-feira, 7 de março de 2016

MIRAGENS


(Edward Hopper)



Entro em ruas, cruzo avenidas e durante o dia o que me guia são os ipês, amarelos, violáceos ou vermelhos; contento-me com suas cores e a brevidade de suas vidas. Amanhã grudarão nos meus tênis e depois alguém varrerá aquelas calçadas coloridas, duram muito pouco, os ipês, o bastante para se chegar até a próxima esquina. Deviam era vender essas árvores em caixinhas, penso agora. Só de escrever sobres eles, me sinto calmo. 

Com as bibliotecas que vislumbro nas janelas, o que ocorre é o seguinte: Tento saber aquilo que escreveriam seus escritores se soubessem o que escreveriam se escrevessem, ou algo assim, como disse Marguerite Duras. Também os imagino como escritores muito anônimos, como párocos de uma igreja só deles. Rezando, lendo, sonhando coisas sob a batuta da famosa frase de Robert Walser, “de que quando dormimos é que estamos mais perto de deus”. Eu acrescentaria que é quando lemos que estamos mais perto de Kafka ou de Machado.

Sobre os Cafés, é bom simplesmente descansar ao som de um café com leite e uma água mineral; ao saber de um jazz ou da noticia de última hora na TV, que no fundo, nos interessa menos que a conta. Cafés cuja existência deve-se mais a ilusão do empresário inexperiente que o cometeu em ruelas esquecidas. Cafés ainda, acredito, obra de alguma lavagem de dinheiro, combustível tão comum em nossa cidade. Cafés vazios e de garçons despreparados. Cafés de criminosos para outros delinquentes. 

Cafés, livros e ipês. Anoto com muito cuidado os nomes dessas ruas e como cheguei até eles; anoto ainda os títulos que decifrei nas estantes dos outros; anoto o berço de tal ipê; anoto tudo simplesmente para no dia seguinte, ver que não passavam de simples miragens.

Cid Brasil