quarta-feira, 30 de setembro de 2015

RÁDIOS DE PROVÍNCIA

(Foundazione Prada)


Hoje nada se passou, exceto que um homem cego, morador da cidade de Sarandi, no Rio Grande do Sul, ganhou um bolo confeitado num sorteio de rádio. Esse homem é meu Tio e se chama Pedro Soares. Disse que estava ouvindo rádio e anunciaram a promoção valendo brindes de um supermercado. Pediu que sua filha ligasse e lhe passasse o telefone. Respondeu algumas perguntas e disse, no ar, o slogan do programa.

Meu Tio escolheu como prêmio um bolo confeitado. Essa tarde foi anunciado como ouvinte premiado. Telefonou-me agora para dizer que aguardava a neta voltar do trabalho para ir ao supermercado pegar seu presente e imagino, posar para as fotos e repetir o slogan do supermercado para alguma futura vinheta que permanecera no ar até o próximo bloco.

Um bolo confeitado. Tio Pedro tem 67 anos e é cego há mais de dezessete. Dezessete anos tendo como horizonte uma tela acinzentada que em nada lhe bloqueia os acessos de risos e encantamento com bobagens como um bolo confeitado.
Lhe perguntei um dia o que sua mente via e ele disse que uma parede cinza, só isso, mas que não era tão feia, o que não era mal para um pedreiro aposentado. Nada de escuridão. Depois, quis saber qual tinha sido a última imagem que ele viu antes da cegueira total. Um par de enfermeiras, contou. Eram bonitas, Tio? Não, respondeu, mas com o tempo foram ficando e imagino que daqui a pouco até sirvam para miss.

Sempre que conversamos, quero saber como vão as moças de branco, se já dão para algum concurso de beleza. Não vão mal, diz, melhores que ontem, melhores que ontem, meu sobrinho.

Não sei, mas fiquei bem contente de saber que as rádios do interior ainda sorteiam coisas bobas como bolos confeitados e que continuam servindo de olhos para um cego sentado na varanda de casa. Voltamos dentro de alguns instantes.

Cid Brasil

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

NATANAEL


(James Ensor)



Como todos sabem: Um vagabundo leva sempre a outro vagabundo. E assim por diante, desde que o mundo é mundo e as praças são praças. Há três meses sou obrigado a vestir um shortinho colorido pela manhã e sair a cata de sol para alimentar minha pele carente de Vitamina D. Quatro vezes por semana faço o mesmo trajeto, me deparo com os mesmos cães sarnentos, levo os mesmos tropeções nas mesmas calçadas e bato um papo com Natanael, um senhor de cinqüenta anos, morador de rua que vive na Praça Arnon de Mello, no bairro do Pinheiro. Embora muito raramente responda a perguntas sobre seu passado, certa vez disse que caiu na mendicância devido a uma grande decepção na vida. E ele sempre diz que nem por todo o dinheiro do mundo contará qual foi a tragédia que o desiludiu. Permanece fiel ao segredo. Até mendigos, penso, tem que ter princípios. Natanael possui vários. 

Dispõe também de uma série de tatuagens estranhas pelo corpo, as mais curiosas são as de um esqueleto desenhado na perna esquerda e a cabeça de um tigre, que parece sorrir ou talvez chorar, riscada no antebraço. Desenhos que podem ter sido feitos num presídio por algum tatuador com Parkinson. Creio ter ganhado a sua confiança no dia em que vigiei seus andrajos do ataque de um cachorro. Nessa manhã, munido do cabo de uma panela, afugentei o cão várias vezes até que Natanael, vindo de alguma ronda pelo bairro, apareceu e me ajudou a proteger seus pertences. Era sábado, dia que poucos circulavam pela praça. O mendigo vasculhou a sacola e estendeu-me um pão envelhecido que neguei de forma categórica, ao que ele retrucou: Ainda bem, pois se você aceitasse o pão de um mendigo nunca mais aceitaria um centavo seu. 

O doce vagabundo, que parece se valer de escolas de barbeiro para cortar o cabelo (seu último penteado é uma série de listrinhas descoloridas), trava com o busto de Arnon de Mello uma luta desigual: De um lado, o busto, que conta com a eternidade dos mármores e a SMCCU – Secretária de Convívio Urbano. Do outro, o vagabundo, que nem da ajuda das pombas dispõe. Devido a isso, Natanael trata de espalhar sujeira na base e nos ombros de Arnon de Mello. Com tanta pirraça contra o busto, me pergunto se Natanael não terá sido funcionário das Organizações Arnon de Mello no passado.

Está manhã, encontrei Natanael fumando e dando voltas ao redor de Arnon. Perguntei como ia. Não vou mal, disse Natanael. Porém admitiu estar intrigado com algo que assistira num documentário. Foi na TV da padaria. Lugar onde faz suas refeições quando a sorte ajuda. O documentário falava de um mendigo de São Francisco, nos Estados Unidos, que hoje batiza a Praça onde morou durante trinta anos. O maluco morreu congelado, disse, e daí todos na cidade fizeram um abaixo-assinado pedindo que a prefeitura lhe desse uma estátua. A estátua que fizeram, prosseguiu, fica com a mão estendida e as pessoas botam algumas moedas na sua mão, uns o roubam, outros fazem pedidos... O mendigo, de repente, virou santo... É uma estátua, rapaz, não pode gastar, nem ir comprar o santo pão... Olha só que tremenda maldade é a bondade de alguns, disse Natanael. Logo depois me pediu alguns trocados. Falei que ficaria lhe devendo. Ok, sem problemas, respondeu, amanhã você me dá.

Cid Brasil