terça-feira, 21 de junho de 2016

ADIANTE, LEITOR!



(Juan Carlos Onetti)
 
ESQUELETO

Tal qual uma meia dúzia de vagabundos da literatura, tenho que admitir que por vezes é mais sedutor seguir aquele caminho trilhado por Borges, que ao invés de se gastar escrevendo grandes epopeias, resolveu facilitar a própria existência e passou a fabricar livros imaginários, edições de areia e vento que de tão raras só existiam em sua cabeça. Cabia tudo num conto. O argentino resolveu assim outros dois problemas comum a todo amante de literatura, o de comprar livros e o de arrumar tempo para lê-los. Inventou logo uma biblioteca. Tentarei aqui fabricar o meu humilde exemplar.

CITAÇÃO DE ABERTURA

A citação de abertura é a única certeza que tenho de meu livro inventado. E já fazendo um exercício futurologia e também de mea-culpa, é valido fazer valer o tempo e o dinheiro do hipotético leitor com algo engraçadinho ou espirituoso já de inicio. Como sabemos, todo escritor ou é um borracho de primeira, conhecedor somente de rótulos de bebida, ou é um onanista de primeira, conhecedor apenas de excelentes sites de pornografia, portanto, a citação de abertura vem para dizer o contrário e fazê-lo parecer aos olhos do leitor alguém que frequenta desde os papiros bíblicos até as bulas de remédios da avó.

Esse champanhe inaugural, tragada por outro, tem ainda que obedecer duas ordens secretas de toda a citação: A primeira é essa que falei acima, dar uma maquiada na escassez de dentes e cabelos e certezas do escritor, e a outra função da cita é servir de cortina de fumaça para o Titanic antes do naufrágio, coisa que todo bom romance ou antologia de contos, deve mirar. Fracassar, eis a grande a arte! No meu livro abriria com essa:

“Em seu trágico desespero, colocava as mãos na cabeça e arrancava, brutalmente, os fios da peruca”

Enrique Vila-Matas.

Ou essa, de Franz Kafka:

“É nos escritórios o lugar onde melhor se disfarça a preguiça”

(Seriam essas, amigos, as duas citações que gostaria de ter no meu livro. Obviamente são as duas únicas que lembro, portanto, creio que elas dizem mais sobre mim do que sobre a história que um dia quero ou que um dia imaginarei poder contar).

PRÓLOGO

Aqui, damos as mãos a Quevedo – o poeta e não o padre – e rabiscamos: “Deus te livre leitor, de prólogos longos” E assim nos livramos de escrever prólogos, pois ninguém, exceto os que querem justificar os livros inventados, escrevem prólogos. Imagine lê-los.

ÍNDICE: 1.2.3...

Há livros de poesia onde os títulos dos poemas um abaixo do outro, ali no índice, acabam por resultar em poemas melhores que aqueles pensados e burilados por seus autores. Pior ainda é quando esse poema acidental vem mapeando os títulos de uma inocente antologia de contos. Portanto, para não correr esse risco, não quero índices.

ENFIM, A HISTÓRIA!

A história do livro poderia ser sobre a velhice do escritor Uruguaio Juan Carlos Onetti. Bêbado e louco, que recebia seus convidados e tietes deitado numa cama, travado de uísque fuleiro, trajando apenas bermudinha e uma camisa furada. Pedindo desculpa a todos, dizendo que só tinha dois dentes na boca porque os outros emprestou a dentadura de Vargas Llosa.

Reza a lenda que Onetti puxava, debaixo do travesseiro, um revólver e apontava para a visita. Recebia todos assim, com um susto. O revólver, lógico, era de brinquedo. E o por quê dele fazer isso é igual, para mim, a sentar aqui e escrever: um absoluto mistério. Misterioso e divertido. Acho até que a capa do meu livro poderia ser essa foto de Onetti, com o revólver na mão e os olhos arregalados, rendendo o leitor ou pedindo apenas que passe adiante.

Cid Brasil



quarta-feira, 8 de junho de 2016

LOVE STORY


(Nickie Zimov)


Tinha vinte e dois anos, era gordinha, media 1,60cm e dizia se chamar Soraya. As manchas no seu rosto mais pareciam um mapa-múndi feito de sardas e queimaduras de sol, ainda assim, ao seu modo, aquela estranha geografia a tornava bonita e exótica. Cobrava cem reais e queria um amor de verdade.

Após nos atracarmos feito feras selvagens em troca das duas onças impressas, recordo que sempre ficávamos – ela com um todynho na mão e eu com uma cerveja, ou o contrário –, cada qual num ângulo da cama, com as costas apoiados na parede espelhada, ofegantes e mais íntimos, contando nossos dramas amorosos das últimas semanas, no que Soraya chamava de vida real.

Creio que ela não ouvia minhas histórias, ou se as escutava, não as julgava de grande apelo dramático, de modo que nunca tecia qualquer comentário – não dizia se eu havia errado ou se fora muito inocente com minhas conquistas civis. Eu sim escutava seus dramas e seus azares com pretendentes que ela conhecia em boates e bares da cidade sob seu verdadeiro nome; eram senhores com aspecto juvenil e cabelos grisalhos que lhe pareciam libertadores de uma ditadura alimentada por vícios; seus namorados a jato eram verdadeiros deuses terrenos que realizariam, em sua cabeça, o milagre da vida em conjunto, da família, dessas tristezas... 

Porém mais comum ainda que esses sósias do George Clooney espalhados por Maceió era nosso encontro seguinte, onde esses mesmos homens passavam a ser pintados de forma torpe, com enormes barrigas e hálitos de jacaré; traidores e mitômanos da pior espécie, por esconderem seus casamentos e filhos. 

Ela me contava tudo isso, tantos os elogios quanto as cacetadas, como se eu não fosse do mesmo sexo que aqueles que a feriram. Ou talvez, justamente por ser seu cliente, quem sabe na sua cabeça ela me visse ali como outro puto, incapaz de julgar ou condenar.

Quando a via chorar, pedia que tentasse algo sério comigo, que tirássemos nossas máscaras, mas Soraya dizia que comecei mal, que ao lhe pagar cem reais por aquela luta corporal que travávamos, eu perdera qualquer chance de conhecê-la de verdade, conhecê-la fora desses espelhos que não refletiam nada. 

Falava bem a Soraya. Só que poderia ter parado aí, mas ela prosseguia: Ela dizia que se quisesse lhe conquistar, que começasse com presentes caros e a levasse para jantar num lugar chique, lhe pagasse uma faculdade. Nunca retruquei ou lhe disse que para mim era aí onde estava o erro: Que se ela esperava isso do mundo, certamente só teria isso.

Hoje vejo que o único esboço que fazíamos era o do Adão de Michelangelo, no quase tocar de nossos dedos, onde não criávamos nada e só reproduzíamos essa pequena crueldade, semana após semana, com frases  pontuadas somente pelos gemidos da TV do motel, uma crueldade que alguns aí fora chamam de amor. Mas talvez, igual piscava lá fora, aquilo fosse mesmo uma Love Story.

Cid Brasil