quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

O UNIVERSO NUMA CASCA DE NUGGETS



 


Recentemente recebi a notícia de que precisarei fazer uma cirurgia de desvio de septo. Resignado, corri o mais rápido possível para fazer os exames de praxe. Tão ocupado estive com esses afazeres que nem pensei muito na tal cirurgia e no aspecto vampiresco do meu otorrino. Só me apavorei de fato quando me dei conta de que precisarei passar 24hs em observação dentro de um hospital, dividindo o espaço com outro convalescente.

O auxiliar do médico, que carinhosamente apelidei de Igor – sendo ele o assistente do Dr. Frankenstein – notando minhas dúvidas e angústias sobre o pós-operatório, perguntou se eu sofria de nosocomefobia (medo de hospital, ele traduziu depois) ou de algum tipo de psicopatia social já que por três ou quatro vezes lhe perguntei se não podia ser liberado no mesmo dia e se não era viável me colocarem num quarto sozinho.

– O que me apavora é passar 24hs assistindo a TV aberta – confessei.

***

Em outra época, quando só havia passado por uma cirurgia de fimose e não era tão metido assim, fui um ávido consumidor de canais abertos. Assistia desde programas de culinária que me auxiliavam a deglutir o almoço, até excelentes shows dominicais sobre como ser um bom motorista de caminhão ou um exímio pescador esportivo na bacia amazônica. Sem contar o mestrado que imagino ter conseguido como ouvinte no Telecurso 2000.

Um dos meus preferidos era um programa de culinária exibido ao meio dia na Band. Não lembro o nome do gordinho careca que apresentava, recordo apenas que ele mais parecia um torturador fazendo alta gastronomia do que um chef. Não que eu entenda muito de pratos, talheres e sabores, mas sendo nuggets de frango e arroz congelado a reprise diária, até se ele preparasse um ovo frito eu iria chamar de haute cuisine.

Meus pais trabalhavam muito e só chegavam a noite, hora em que mal bebiam um copo d’água e já iam capotar na cama. Creio que se eles houvessem olhado com mais carinho para o interior da geladeira teriam visto meu estoque de caixas contendo os pedaços de papelão empanado.

Uma faxineira, que mais parecia um índio de madeira (incluindo o silêncio), vinha semanalmente espalhar a poeira da casa e preparar as porções do arroz-Highlander. Porém, isto não é desculpa para uma dieta ruim, a questão é que entre as tranqueiras que um nugget pode levar dentro de si deve haver algo ali ia que corroía meus neurônios aos poucos, fazendo com que eu sofresse de uma esquizofrenia galinácea, tanto que a noite, ao ser indagado por minha mãe o que almoçara, tratava logo de cacarejar:

– Hoje fui de Peixe ao Scalope… Aprendi na TV, vendo um cozinheiro preparar…

Ela, cansada, passava até o quarto comentando que aquilo era muito bom, sem contar que eu parecia fazer milagres com o dinheiro que sempre ficava na cômoda para uma eventual emergência.

Não lembro quando comecei a desenvolver a técnica de mentir para mim mesmo, sei que aquilo foi tão natural quanto ir dormir com uma vela acesa em cima do sofá e não acordar mais. Consigo apenas me ver, em frente a antiga Semp Toshiba, feito um samurai no alto de uma montanha treinando ao pôr do sol meus golpes, sincronizando o que via na tela com o que restava no prato, embarcando num spaghetti al pesto tendo a boca pequenos pedaços de botinas, pés de galinha e conservantes. Após o banquete, mudava de canal e saboreava os desenhos, o Chapolin e até aquele seriado Blossom, tudo sem culpa. Sequer notava quando os deuses, ou a Palmirinha Onofre, reprisavam o episódio do Pica-Pau faminto onde ele devorava até as folhas do calendário.

Algum ingrediente alucinógeno deve brotar da mistura de exemplares da Revista Hermes® triturados com meia dúzia de miúdos de frango aliados aquela realidade virtual, pois cheguei ao cúmulo de numa tarde treinar o meu discurso na sede da ONU relatando a descoberta da cura para a fome no mundo. Meus antolhos caíram no dia em que desmaiei na quadra do colégio e ainda delirando falei para a enfermeira do posto de saúde:

– Hum, muito bom esse camarão com queijo roquefort, foi a senhora que fez?

– Menino, você tá tomando soro na veia…

De sobremesa recebi a intimação de minha mãe para todos os dias ir até o seu trabalho e almoçar sob sua supervisão. Após um prato com feijão, verdura e carne de verdade finalmente recobrei a consciência.

E só então lembrei que meus pais eram donos de um restaurante.

Texto originalmente publicado em 25 de setembro de 2017 no site da REVISTA DOS ESCRITORES MUITO ANÔNIMOS (EMA)



                                                                                                                                    

domingo, 26 de novembro de 2017

ELES NÃO USAM TACTEL




Da fauna e flora presente nos shopping centers da vida, descobri que a espécie que mais gosto é a dos vendedores das lojas de surfwear, afinal, num ambiente elitista e blasé como são os shoppings, essas crianças crescidas sempre abertas a qualquer papo, fogem dos típicos muzaks da concorrência e acabam por ser verdadeiras brisas em meio ao ar refrigerado do capitalismo ordeiro e presente.

Não tenho nada contra grandes centros de compras modernos, que fique bem claro – apesar de terem abolido o vaporwave das caixinhas de som e de cobrarem caro pelo estacionamento – mas dia desses foi preciso mergulhar fundo nos bulevares fakes para procurar uma sunga de natação nova, já que a minha entrou naquela fase de transparência que tanto faz se você vai nadar pelado ou com ela. Mas também não podia ser qualquer sunga, a escolhida teria de se encaixar nos seguintes quesitos antes de envolver meu corpo:

Que fosse preta ou azul escuro e não custasse mais de cinquenta reais; que não tivesse uma estampa parecendo uma externa de um filme do Brian de Palma; que não fosse muito angulosa ao ponto do meu pênis parecer duas castanhas equilibristas, nem que fizesse me sentir um stripper aposentado.

(Que os anos 80 foram um grande equívoco todos nós já sabemos desde que o primeiro roqueiro optou por partidos conservadores ao invés de overdoses como causa mortis, mas foi espantoso notar que no próximo verão será impossível não parecermos figurantes de uma novela estrelada por Nuno Leal Maia tamanha a convexidade das cuecas de praia que vem aí.)

Sem muito horizonte naquele mar de gente (era domingo a noite) me vi compadecido da nudez de uns peixinhos na vitrine de pet shop, enquanto meia dúzia de crianças e pais se derretiam por um beagle a espera da fiança, o que me lembrou da história contada por Zeca Pagodinho de que todas as vezes que bebia em shoppings acabava comprando um cachorro de três mil reais por puro dó. Creio que não é por acaso que as pet-lojas ficam sempre perto da saída.

No reflexo do aquário notei o loop de uma onda quebrando e o logotipo de uma boutique de Surf. Nadei, digo, caminhei para lá, já sem folego ou sem esperança, movido apenas pelos motivos florais e pelo apelo da dita onda sendo repetida em três TVs tubos.

Um rapaz com ares de Salsicha do Scooby-doo perguntou se podia me ajudar. Não me olhou dos pés a cabeça como manda o manual dos vendedores, encarou-me nos olhos e tocou em meu ombro. Mais do que um cliente notei naquele vendedor a falta de uma tia ou avó que lhe tomasse conta. Era um legitimo remanescente dessa classe operária que preza por tipos com voz de menino dentro de um corpo de adulto. Aquilo me comoveu. Foi como ver um homem da renascença – ou um astronauta, igual naquelas cenas de Além da Imaginação.

Falei meu drama por um trapo decente que me cobrisse as partes e ele prontamente sacou de uma gaveta o que eu tanto buscava. O pano ideal para minhas imperfeições. Cor, elasticidade, preço, durabilidade. Tudo perfeito não fosse um enorme logo na parte frontal, quando ele a virou. Mesmo assim provei, incomodado por carregar um outdoor na virilha. Abri a porta do provador e questionei, sentindo-me um Marx de tanguinha:

E essa farra do capitalismo aqui?

Ah, ninguém liga pra isso… É um detalhe pequeno.

Era mais fácil minha pele desbotar no cloro da piscina do que aquela sunga. Pensei ainda em falar que já levo nomes, referências e placas demais na alma para estampar aquilo no corpo deliberadamente. Voltei ao provador, tirei a peça publicitaria, me vesti e como desculpa soltei a velha carta dos fracos, a de ir dar mais uma olhada por aí, porém ele me desarmou só com um gesto. Ao devolver a sunga para a gaveta parecia um soldado derrotado dobrando uma bandeira na qual só ele acreditava, murmurando para si mesmo que era uma pena. Foi quando o ouvi dizer, como se consolasse uma criança preterida no orfanato:

Ah, mas QuikSilver é QuikSilver…

Ao escutar seu lamento, foi como se pulasse os cincos segundos de propaganda e um vídeo rolasse diante de meus olhos exibindo parte das pequenas tragédias daquele vendedor: O subir e descer de escadas até o estoque; as doze horas diárias inclusive nos domingos; a tentativa de agradar metade da cidade que jamais pisará numa prancha de surf; a realidade mesquinha e opressora de vendas, comissão e pechinchas…

Baixei a vista para disfarçar o cisco que caíra em meu olho ante o seu tão digno e doloroso “QuikSilver é QuikSilver”, era uma rara demonstração de fé, de crença num mundo cada vez mais ágil, oco e incauto. Se ainda há alguma tradição nos Shopping Centers ela está aqui, vestindo bermudas de tactel, boas e velhas camisetas com estampa nas costas e um boné de aba reta. Saí da loja mais nu do que entrara.

“QuikSilver é QuikSilver”, era como um pedido de resgate. Era o “nunca mais, nunca mais, nunca”. Comprei pipoca, tomei sorvete, tentei achar alguma ficha no chão do fliperama e meu corvo pessoal roendo-me a alma. “QuikSilver é QuikSilver”. Voltei lá.

Vai levar a sunga? Perguntou o vendedor tirando a franja dos olhos.

Não. Eu… – e percorri com os olhos uma saída que não me envergonhasse tanto – e aquele chaveiro, ali? – apontei.

É QuikSilver também, vai levar? É ótimo pra chave do carro, da casa…

Quando concluímos a compra de seis reais por um chaveiro em forma de chinelo, ele me levou até a porta e comentei que os manequins de Surf Wear eram os últimos que ainda sorriam comparado as outras vitrines.

Ih… É mesmo! Disse o vendedor gargalhando mais que o boneco. É o Giva, o nome dele… Completou apontando para a gengiva do manequim.

Giva usava uma camisa da QuikSilver e uma bermuda de tactel cuja estampa era um afresco da fachada da própria loja. Pensei em fazer como num conto de Borges e me procurar dentro da estampa da bermuda e talvez ali encontrasse alguma verdade secreta do mundo ou minha tão sonhada sunga, mas estava lívido, havia ajudado alguém. Até a voz dentro de mim mudara, dizia que eu era especial e que o fim do expediente estava previsto para dentro de cinco minutos.

Texto originalmente publicado em 11 de setembro de 2017 no site da REVISTA DOS ESCRITORES MUITO ANÔNIMOS (EMA)