quinta-feira, 26 de novembro de 2020

SAIDINHA DE BANCO

(Harley Manifold)
 

 

 “Todo dia um malandro e um otário saem de casa.
Quando eles se encontram, saí negócio”.
- Provérbio Chinês -
 

Tenho, como todo homem são, uma serie de neuras, desconfianças e paranoias por qualquer coisa que exista nesse mundo. Uma delas é a de não confiar em bancos e muito menos em aplicativos. Mas... Enquanto a pandemia do covid-19 não mata metade da população mundial e o Covid-20 ainda não nos fez chegar a completa barbárie e destruição de todo o sistema capitalista, é preciso sair de casa para encarar um caixa eletrônico numa agencia qualquer e pagar boletos. 

Qualquer cidade brasileira que tenha programas policiais na hora do almoço como lideres de audiência não inspiram muita confiança. Portanto saio de casa apenas com o essencial nestes tempos. Ou seja, mascara e desodorante no sovaco.

Antes de entrar no banco, igual a todo mundo, vejo a movimentação de longe. De dentro do carro, olho para os quatro cantos se não há ninguém escondido no estacionamento, ou mesmo dentro da agencia. Nada. Tudo calmo e vazio. Perfeito. Mesmo assim entro intuindo uma coisa ruim, um mal estar que vai muito além da obra completa de Dostoievki que carrego em contas. A sensação de que serei pego por um momento até me faz esquecer o limite do cheque especial.

Olho a porta de entrada várias vezes e tento ver pelo janelão alguma movimentação mais estranha na rua. Impaciente, tiro o cabelo da testa, finjo tirar caspa do ombro direito, ajeito a manga do lado esquerdo e coço o peito – alguém mais atento nas câmeras de segurança notaria que esse é um sinal da cruz disfarçado. Faço um pedido a sabe-se lá quem, desejando proteção e que por favor, hoje não...

Mas então eis que acontece! Ouço o barulho de uma motocicleta vindo da avenida. São dois caras. Puta merda, eu penso, me ferrei. São eles. É ele. Fico congelado olhando para uma família ilustrando as vantagens sobre o débito automático. Pelo espelhinho retrovisor colocado acima do caixa eletrônico confirmo meus temores,  mas esse cara não só atacava pessoas no Santander? O vulto se aproxima. O meliante vem por trás e parece procurar um lugar em que eu não o note até que se prepare para o seu bote. Pela visão periférica, noto a motocicleta que o trouxe manobrar.

Coloco as duas mãos aonde ele possa ver em cima do teclado numérico e respiro fundo. Ouço um clique. Já sei os seus passos, ele é figurinha carimbada nas agencias bancarias aqui da cidade. Mas só nas do Santander, o que ele faz aqui agora, na Caixa Econômica? Quantos clientes já não caíram em suas mãos, em seu golpe. Só me resta aguardar o inevitável.

Antes que eu esboce qualquer reação, ele saca de sua estranha maleta seu instrumento e... Começa a tocar Evidencias, de Chitãozinho & Xororó. Não há saída. O violinista do banco está na única porta. Baixo a cabeça e amasso a conta de luz. Percebendo meu descontentamento, rapidamente ele emenda Viva La vida, do ColdPlay.

Sua armadilha é perfeita.

Afinal, quem não vai se sentir fragilizado diante de um violinista, um artista sem palco querendo angariar fundos para sobreviver nesse país de insensíveis e que não valoriza o Belo (não o marido da Viviane Araújo!).

Se não dermos dinheiro, é por que somos imunes à arte tão refinada como um violino que toca o tema de Frozen. Estaremos, se não depositarmos dinheiro na sua maletinha aberta, assumindo nossa condição de seres cujos ouvidos já estão estragados pela algaravia do mundo moderno. O pedinte artista é o “sou pai de família/homem de bem” da arte; a chantagem perfeita. Impossível critica-lo sem parecer um esnobe ou um babaca, porém esse cara tocando Marilia Mendonça nesse cavaquinho com vareta, num banco, eleva o nível de forçar barra, é outro patamar como dizia o flamenguista.

O cara que topa fazer esse jogo dele, é um demônio. O homem do violino no banco se não tivesse tocando violino estava concorrendo ao senado ou metendo gol de forma oportunista em algum time de futebol profissional. Se bobear, aprendeu a tocar só pra explorar pessoas em situação de boleto atrasado, como eu.

Querendo manter minha honra de homem culto, mas sem trocados no bolso. Me pego quase que lhe sorrindo e dizendo que não tenho nada. Eis a verdade. Estou liso. Será que ele tem maquineta de cartão?

Não. Digo a mim mesmo, nada disso.

Ainda que tivesse alguma nota nos bolsos, não lhe daria, pois acho seu golpe deveras rasteiro. Um instrumento musical na mão de alguém sem escrúpulos, me faz lembrar das palavras de Fausto (o Silva): “É igual colocar gilete na mão de macaco”.  Mas aqui não é um teatro, aqui é o mundo real. O único lugar onde se pode comer uma feijoada e parcelar em três vezes no rotativo. Porra, um alicate de unha de três reais eu consegui dividir, por que não consigo encarar esse doidão?

Tento manter a calma, digito tudo manualmente, zero por zero. Atenção total para não agendar nada para dois mil e trinta. Estranhamente vou mergulhando nas suas melodias e me pego acompanhando o ritmo do Für Elise, de Beethoven e quase peço Bis quando ele toca Não quero dinheiro, do Tim Maia. Mas aí noto o deboche.

Passados vinte minutos de nossa valsa, estou batucando no teclado o tema da vitória do Ayrton Senna.

Sozinho.

Olho para trás e não vejo ninguém, exceto um boneco de papelão pedindo para os clientes baixarem o aplicativo do banco.

Minha pilha de contas atrasadas cansou o pescoço dobrado do violinista. Ou será que ele notou que sou um pobre diabo ocupado, pagante de contas e que provavelmente não lhe daria nada. Igual entrou, ele sumiu noite adentro, escafedendo-se feito uma alma errante, para talvez aterrorizar outra pessoa, nessas tão temidas e famosas saidinhas de banco de uma cidade tão traiçoeira como Maceió.

Sigo no meu papel de otário que não atrasa vencimento cantarolando “já é natal na Leader Magazine”. Quando saio da agencia, percebo que alguém escreveu no para-brisa traseiro do carro, usando a poeira como quadro-negro: “Me lave!”.

Só pode ter sido ele.

Em quantas vezes será que parcelam uma lavagem completa naquele posto? 

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

GARÇONS

(Toulouse-Lautrec)
 

Nas línguas latinas a melhor definição da palavra garçom é a francesa, escrita com “N” no final, que significa “rapaz”; já nos idiomas anglo-saxões, o inglês waiter ou, aquele que espera, define bem a alma desta profissão que passa por mais transformações do que o preço das caipirinhas ao longo da noite. Embora, lá como cá, todo mundo requisite a atenção desta categoria pelo universal gesto de erguer a mão junto do irritante: Psiu!

Partindo para a alta cultura e ambientes mais refinados, como os botecos, vemos que Reginaldo Rossi eternizou a figura desse serviçal contemporâneo numa canção sobre um ébrio (pinguço, em francês) desabafando casos amorosos numa mesa de bar a altas horas da madrugada, onde para tristeza do pobre coadjuvante na letra, que além do aluguel do cliente, ainda terá que deitá-lo no chão, sem sequer a estima de uma gorda caixinha ou do pagamento dos 10% opcionais.

Mas a dinâmica derivada do choque entre trabalhador e trabalhador de folga presente nas mesas e cadeiras mundo a fora tem mudado bastante desde que os jovens empreendedores passaram a assumir os negócios dos pais, e tal qual Midas ao contrário que são, ou seja, tudo em que tocam vira merda, a carreira de garçom que parecia uma opção mais digna do que o serviço militar ou a advocacia para jovens desempregados exercerem algum tipo de perversidade remunerada, agora esses profissionais tem não só que abandonar as clássicas vestimentas presente em nosso imaginário como as camisas brancas surradas e as gravatinhas borboletas, como também deixar para trás o andamento da boa e velha arte de servir sem simpatia. Ou, de servir mal, para servir sempre.

Agora, além de ostentarem trajes que mais se parecem com os de um sorveteiro de filme americano, como bandanas e aventais de cores quentes, há que se carregar sorrisos e tolerância nas bandejas cansadas com intimidade forçada de clientes. Como se não bastasse sobreviver a salários ridículos, patrões carrascos e a canções ao vivo de voz e violão, agora a estes nobres profissionais lhes são exigidos, não só a sobriedade total em alguns casos, como até mesmo que expliquem que os 10% na conta são opcionais, embora o couvert artístico seja obrigatório – mesmo que eles sequer ganhem adicional insalubridade por passar o dia inteiro ouvindo Gaúcho da Fronteira ou Homem-Aranha, de Jorge Vercilo.

O clássico tipo que só falta bater em você, está perdendo espaço para o garoto invisível de tablet na mão, ágil e faceiro, pronto a lhe recomendar o especial do dia e o melhor vinho da casa, mesmo que na pétrea linguagem das comedorias ter um atendimento rápido, com muita simpatia e atenção nunca significou que você é uma pessoa bem vinda ali ou que seu garçom da vez o estima, muito pelo contrário, isso significa que seu atendente quer o mais rápido possível que você dê o fora do lugar. Não importando se você irá deixar caixinha. Ele e principalmente, o ambiente, querem se ver livre da sua cara.

Portanto, estime a casa onde você é driblado a cada vez que levanta a mão ou solta assobios. Solte muitas estrelas nos aplicativos onde o garçom lhe joga as coisas na mesa ao invés de pousá-las e diga por aí que o olé que você tomou no salão significou estima e apreço por sua presença.

Entenda também este e outros sinais corporais emitidos pelo seu garçom, que apesar da modernidade, persiste em sua alma servil; por exemplo, ao lhe entregar o troco se ele demorar em lhe passar as notas ou mesmo se ele te colocar de forma constrangedora impedindo-o de sair da mesa, praticamente imprensando-o na cadeira, e com a cintura quase rente a sua cabeça, saiba que aquilo é mera formalidade da função e não um convite ao erotismo, pois ele não está só pedindo, mas sim dizendo que aquela gorjeta é dele.

Caso você seja um durango ou mesmo não entenda a hostil dança que ambos praticaram durante o tempo de quatro chopes e uma porção de frango à passarinha, não se preocupe, mesmo o mais embrutecido anotador de pedidos irá lhe dizer, obrigado – mesmo que seus olhos e sua alma estejam dizendo: 

Fela da puta! Que em francês significa volte sempre.