sábado, 15 de maio de 2021

CURSO DE ESCROTOS CRIATIVOS



 

“Foi o pior dos tempos, foi o melhor dos tempos...”, dizem que este celebre começo de O Conto de Duas Cidades, de Charles Dickens, surgiu enquanto o autor inglês, vejam só, estava escrevendo justamente O Conto de Duas Cidades. Mas nem sempre foi assim na história da literatura universal. São inúmeros os casos de obras primas que vieram a lume enquanto seus autores não estavam debruçados sobre suas escrivaninhas, mas sim exercendo outras atividades alheias a escrita.

Portanto, foi pensando nisso que nós da Startup Verruga Dourada, em parceria com a extinta secretaria de cultura e o extinto ministério do trabalho, resolvemos lançar um edital que visa contemplar você, escritor agrafo, que ainda não sabe o que quer escrever mas tem toda a vontade de descobrir. Em principio serão 10 autores selecionados para nossa residência artística – na casa dos outros. Nosso programa te ajudara a encontrar inspirações e caminhos até suas obras futuras através de prosaicas atividades domesticas como lavar pratos, passar roupa, cuidar de crianças, fazer compras ou cozinhar para completos estranhos em troca de alimentação, um teto e poucas horas de descanso. Caso o inscrito demonstre alguma dificuldade de adaptação ou bloqueio criativo, ele poderá ser induzido a atividades que exijam mais concentração e foco narrativo para acelerar sua evolução literária, como varrer enormes descampados, cuidar de animais de grande porte em fazendas ou lavar quadras poliesportivas no chamado Brasil profundo.

E se nem assim você conseguir escrever uma linha sequer, mesmo que seja um pedido de resgate para seus pais, adotaremos exercícios de observação e introspecção com as chamadas caminhadas peripatéticas; pois é sabido que desde Aristóteles que a percepção e a comparação do mundo precisam de ar fresco. Então, está esperando o que para começar a trilhar o caminho (a pé) do seu futuro prêmio Nobel? E enquanto isso entregar algumas marmitas pelo caminho? Afinal, essa volta a nossa ancestralidade é mais que necessário em épocas de virtualidades e vazios como a nossa e fazer isso junto de outros artistas enquanto leva alimento a outro semelhante em estilosas mochilas térmicas, de cores quentes, é enriquecedor. Tudo, é claro, da forma mais segura possível para ninguém sair perdendo nem um só centavo caso você deixe de entregar um sanduíche por causa de uma epifania  em plena Avenida Jatiúca.

Você, escritor nascido em berço de ouro, que ainda sorri nas fotos de divulgação, saiba que na ausência de guerras para exercitar seus assombros, lares conflituosos ou relacionamento abusivos (ou no caso de você ser o mala da relação) nosso edital irá abrir sua cabeça, com o perdão do trocadilho. Ou você acha que Graciliano Ramos escreveu Vidas Secas para falar sobre os benefícios das dietas low-carb? 

 

sábado, 1 de maio de 2021

ERI JOHNSON'S PRO FUTVÔLEI


Ator, humorista, apresentador, imitador do Romário, pegador, parça dos jogadores dos anos 90, pessoa inconveniente em programas de auditório, influencer, bon vivant... São muitas as facetas de Eriovaldo Johnson Araújo de Oliveira, o popular Eri Johnson, mas uma coisa, além da sua indefectível pinta no rosto e do seu imenso carisma, que salta aos olhos do público a cada nova aparição: O que, afinal, é Eri Johnson? 

Todo mundo que acompanhou a carreira ou não de Eri sempre teve essa curiosidade, então por isso esse game, lançado com apenas 21 anos de atraso para o finado console Playstation 1 vem a lume para sanar as dúvidas de uma legião de fãs, e detratores, do interprete do mítico Reginaldo, em De Corpo e Alma (1992). 

Apesar de ser um jogo esportivo de uma modalidade até então desconhecida nos videogames, e que também ninguém dá muito a mínima na vida real – outra sacada dos produtores essa –, pinceladas da biografia de Eri são reveladas para o jogador entre uma partida e outra de futvôlei, independente de vitórias ou derrotas, pois assim como o protagonista do game, ele vai falar dele mesmo ou fazer uma graça queira você ou não. Outro acerto da produção é que nesse Eri Johnson’s Pro Futvolei, onde é claro, controlamos o próprio Eri, nossos adversários em longas batalhas nas areias de Copacabana são seus próprios personagens, como o citado Punk Reginaldo, o homessexual Lulu de Barriga de Aluguel ou sua imitação do Romário. A fase final é contra, no fundo, seu maior nêmeses: A pinta no rosto. 

Claro que entre um saque e um rebote você terá ajuda de outros ícones da chinelagem carioca, como Renato Gaúcho, Wolf Maya, Conrado, garçons da Churrascaria Porcão e Alexandre Frota. Há também diversas opções de customizações da sunguinha de Eri. E aí, ta esperando o que? Ou como diz o próprio Eri em sua versão Instagramer: “Pra que (ficar de fora)?". 

Cotação: **.


segunda-feira, 26 de abril de 2021

OPORTUNIDADE

 

(Molly Bounds)

-- Nossa! Mas olha só para você, cara! Tá do mesmo jeito!

-- Tú acha?

-- Porra, estais um menino ainda.

-- É... Na época do ensino médio eu não era careca, mas... Acho que conseguir manter o peso.

-- Há-há! Que é isso.

-- Tempão, né? Faz quantos anos?

-- 15, né?

-- 15. É verdade. Passa rápido... Agora to com 32.

-- Eu também!

-- Mas e aí, fora isso, o que me diz?

-- Ah, estamos na mesma. Tentando ganhar a vida.

-- Eu também! Tu me conhece, não gosto de ficar parado.

-- É verdade, mas deixa eu adiantar uma coisa. Primeiro quero te agradecer, por você ter puxado papo lá no insta da minha esposa, tu curtiu umas fotos dela e ela comentou comigo, “mas esse não é o Serginho, que estudou conosco?” Aí na hora eu pensei. É claro! O Sergio, porra! Eu pensei ainda: Como podia ter me esquecido do Sérgio... Você é perfeito!

-- Olha, eu... Não sei se é bom a conversa ir para esses rumos... Minha intenção aqui é outra.

-- O que foi? Deixa eu terminar, caramba!

-- Certo, mas vê lá, hein? Sou católico, não curto muito certas ondas...

-- Você é um piadista mesmo! Ia dizer que tava mesmo com você na cabeça, pensando em te chamar pra um papo, de repente te pagar um café, jogar conversa fora; falar de negócios...

-- Ufa! Ainda bem que você falou a palavra mágica.

-- Qual? Sobre te pagar um café? Tá sem grana?

-- Não! Falar de negócios. Sou eu e um papo bom sobre negócios, bussines...

-- Então foi perfeito! Estava nas estrelas!

-- É, eu tava apreensivo que você fosse me convidar para outras coisas...

-- O que?

-- Sei lá...

-- Fala, cara!

-- Gravar um podcast.

-- há-há. Não, não... Mas, você sabe, comunicação é importante também... E com esse mundo aí de internet... Tudo é dinâmico, se você não busca um conhecimento, sabe, se não busca um aperfeiçoamento você não...

-- Sei... Continua.

-- Enfim, tô com uma oportunidade única aí de como ganhar dinheiro. Coisa séria, nem precisa ter muitos seguidores em rede social ou internet top... Qualquer um pode entrar, aprender, investir... Demora um pouco, mas o retorno quando vem... É batata!

-- Ah, cara... É essas paradas... Aí, não!

-- O que foi?

-- Porra, perdi a hora do almoço para vir aqui te ouvir falar desses papos de coach, maluco...

-- Calma... Eu já ia chegar aonde quero chegar.

-- Tá, diz aí.

-- É dinheiro seguro. 100% online. Mas é dinheiro mesmo. Nada de criptomoedas ou essas porras.

-- Certo, certo, certo. Mas não vai me dizer que é um desses cursos que ensinam a vender cursos?

-- Calma... Não viu aquele filme de ontem, a “primeira regra do Clube da Luta é não falar do Clube da Luta”.

-- Não, não assisto mais a globo. Televisão de comunista! Assisti o filme do outro canal, aquele em que um cara barbudo é pego numa cilada do caramba, daí no fim o pai dele vem vingar ele.

-- Qual, A Paixão de Cristo?

-- Não, porra... Era um com o Chuck Norris...

-- Ah... Sim! Então, esquece isso. Deixa eu te falar o que ensina nesse curso. Pense em mim como uma porta de entrada para esse mundo novo que vai se abrir outras portas para você, através da internet e dos cursos on-line.

-- Não, não...

-- Tá bom, vou de dar uma colher de chá, mas para te explicar melhor o que é isso, eu preciso que você compre o curso, e nesse curso não é um desses tantos que tem por aí. Aqui é onde você aprende a ganhar dinheiro de verdade. Pense em mim, como um...

-- Amigo?

-- Não. Um facilitador. Isso, facilitador! E não tem mensalidade, nem nada, sabe. É diferente mesmo desses outros. É só uma vez que você investe. E é um investimento em você mesmo. Onde você pode usufruir desse método quantas vezes quiser, depois caso queira ampliar seu capital aí você pode convidar quem você quiser... Pode até dar até aulas desse método ou de algum assunto que você domina. Você vai criar um método de vender coisas para outras pessoas e quanto mais a procura por seus cursos, mais você ganha. Demora um pouco para você ter o retorno esperado, como te falei, mas você tem retorno sim, porque as técnicas que o curso te passa são ouro puro.

-- Isso era uma oportunidade de grana, agora é curso mesmo?

-- Eu chamo de conhecimento direcionado, que é hoje o que vale que tudo! Vale mais que dinheiro e no fim vai mudar sua situação financeira para melhor, mudar sua vida!

-- Se isso é tão seguro, 100% online e é tão maravilhoso, porque você está me contando isso ao invés de ficar em casa, na moita, só ganhando dinheiro?

-- Porque você é meu amigo! E eu quero te fazer ganhar dinheiro... É como está na bíblia: Generosidade... Ajudar os outros e ser ajudado... Essas porras aí!

-- Não... Deixa eu te falar do que to pensando para nós!

-- É foda...

-- O que foi? Deixa eu contar...

-- Tô a 2 anos aí ganhando dinheiro na internet com isso, na maior honestidade, com meus cursos; é seguro, e pensei em você na hora, lembrei que você sempre me ajudava com umas colinhas nas provas de Química.

-- Era física. E se você diz que está a dois anos ganhando dinheiro com isso, como é que só agora pensou em mim?

-- É que cada um tem seu tempo, você não tá ligado? Uns são mais lentos, outros mais rápidos nos seus processos, isso é uma das coisas que você aprende nesse curso, caso você queira investir.

-- Era grana, depois curso, agora virou investimento? Isso daí é dinâmico mesmo, hein? Não quer ouvir mesmo o que tenho para te falar?

-- Tô te falando que a parada é dinâmica! Olha, como estou vendo que você agora está interessado, te faço pela metade do preço. Oportunidade!

-- Tá bom, tá bom... Eu quero. Passa o número da conta que eu transfiro aqui pelo celu.

-- Boa! Você não vai se arrepender!

-- Entendi... Pronto! Feito! E agora?

-- Agora o que?

-- Cadê o tal curso, tem alguma apostila, DVD’s, aula presencial... Como é?

-- Na verdade eu te expliquei tudo já. Falei que primeiro você investia no curso, você pagou para entrar já sabendo do que era um investimento nesse curso, no caso, um curso que pode te ensinar a dar palestras, fazer conferências... De repente, você pode criar uma turma e montar um curso para falar do que tu quiser! É dinâmico e flexível a coisa. Agora você é um investidor, entendeu? Invista seu tempo nisso! E tem os outros módulos, e esses para investir, para entrar nisso que eu chamo de plataforma, você precisa de mais dois amigos para formar uma turma de investidores, e eles de mais quatro, porque a procura disso é grande, sabe? E quando a coisa estourar, não vai dar para quem queira mais.

-- Putz... É, isso, então?

-- Como assim? Abra os olhos, corra atrás... Isso pode mudar tua vida!  

-- Tsc...

-- Então é isso, tá certo? Pensa melhor no lance de mais amigos para entrar no teu curso. E pensa no que você quer passar no teu curso. Cria um tema, de repente... Você é inteligente, vai se dar bem! Vai se encontrar!

-- Se eu chamar mais um amigo, eu recupero o que investi, não é?

-- Sim, sim. Claro! Demora, mas recupera. Mas é bom ser rápido.

-- Tá certo...

-- Outra coisa. Falei, falei, falei, apresentei minha proposta para você mudar de vida e nem deixei você falar muito.

-- Ah, sim. Tinha uma coisa... Mas agora... Esquece!

-- O que era?

-- Ia te chamar para entrar num esquema de pirâmide...

 

domingo, 18 de abril de 2021

A MARCA HUMANA



O nariz para fora da máscara são como os traços de Van Gogh, é algo que você bate o olho e sabe do que se trata. É como uma olhada em qualquer fotograma da fase onírica de Fellini para sabermos que ali está um filme a ser evitado de Federico Fellini. Essa mescla de distração com deboche é único na história da humanidade não só porque que nos difere de outras espécies já extintas e que não foram preservadas tal como deveriam como os dinossauros, as tartarugas gigantes das Ilhas Galapagos ou os Centroavantes Brasileiros.

Tudo bem que não é novidade as pessoas tentarem sempre brincar mais que a brincadeira, dar sempre uma volta a mais no parafuso; seja andando de moto sem capacete ou topando ser fumante passivo em ambientes fechados, ou mesmo se apaixonando por mulheres que conheceram no Pagode da Segunda Sem Lei do Bar do Maçã no Tabuleiro – ok,isso foi bem especifico, mas vamos em frente.

Durante boa parte do ano de 2020, alimentei minha gastrite com o ódio que sentia dos que usavam o nariz para fora da mascara, detestava mais esse tipo de gente até do que quem não usava a máscara. Porém, como sempre acontece em momentos de crise, peitei a situação da única forma que conhecia: Chorando em casa feito um bezerro. Até que me dei conta de que já era um milagre um planeta onde metade das pessoas se deixaram levar pelo papo de figuras como Hitler, Fernando Collor, Margareth Tacher e no David Luiz como zagueiro, isso para não citar anomalias mais recentes, ou mesmo que o American Way of Life era uma coisa legal; portanto, uma parte se unir e topar se cuidar da única forma sensata que podíamos, já era um grande passo para a humanidade e o nariz para fora, talvez fosse só um pequeno passo (para a cova?).


O homem é um ser autoral, já no alertou a sociedade Brasileira de Marcas e Patentes. Então, um nariz a mostra durante uma pandemia viral, é só um lembrete do tipo que o SBT faz exibindo flashes de produtos Jequiti. Uma informação oculta a ser inserida em nosso cérebro, sem que você perceba. No caso do nariz, assim como do SBT, algo que se for possível, é bom evitar.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

SHOW DE CALOUROS




Nos esportes, a falta de aptidão natural e a má vontade dão mais na cara, porém nas artes alguém sem talento ainda consegue encorajamento, aplausos e cachês. Era o que Frederico sempre pensava quando recordava sua infância e no seu pai artista.

Além de fotografo, cantor e ator, seu pai era também dono dos meios de produção, no caso, dono de uma companhia de teatro infantil. Por muitos anos o pequeno Frederico foi não só o ator principal das peças do pai, como também a criança de qualquer outra atividade que precisasse de algum prodígio. Seu pai talvez só não o inscreveu para miss universo, de resto, lá estava Frederico e o pai.

Como em todos os meios de trabalho, e nas artes cênicas não é diferente, para as mulheres o sarrafo é sempre mais alto e por isso elas precisam abandonar os papeis infantis aos 15 anos de idade, pois depois disso tudo fica estranhamente sensual e sexual. Mas para os homens, um Peter Pan de canelas peludas, bigodinho ralo e roupas apertadas ainda é um Peter Pan. Só que aos dezoito anos Frederico deu um basta em toda aquela palhaçada. Cada vitrine viva feita em lojas do centro ou comercial de TV em que figurou; cada escada nos circos da vida foram passados na cara de seu pai. Alegou que na escola era motivo de chacota, que as meninas o evitavam. O pai ficou arrasado, sonhava que seu rebento repetisse seus passos, superasse-os; que desse mais uma volta no parafuso; mas o menino queria ser motorista de ônibus, mineiro, vendedor de sapatos... Qualquer coisa menos, em suas palavras, um desinibido.

A última conversa que tiveram faz 20 anos, foi num natal qualquer, e as últimas mensagens que trocaram no aplicativo que a globo nunca diz o nome, mas todo mundo sabe que é o whatsapp, tem 5 meses. Até hoje. Pois o hoje é o dia do aniversário de 42 anos de Frederico, que é quando salta uma notificação dizendo: “Filho, olha o que achei na internet. Parabéns!”. Junto vem um link do youtube mostrando uma participação do menino Frederico num show de calouros em um programa local, onde ele canta a música Loirinha, de José Orlando. 

No vídeo ele usa uma enorme camisa florida, parece um balão a camisa, por dentro da calça. Gel no cabelo e uns dois anéis na mão. Foi seu pai quem o inscreveu no programa, ele lembrou agora, o inscreveu mais para salvar o amigo apresentador que não tinha muitas crianças para participarem, do que para forçar o filho, agora ele lembra, a algo diferente, seu pai era desses, gostava de ajudar. Tinha senso de justiça. Foi seu pai também quem cuidou do figurino, quem o ensinou a música, dirigiu seus gestos naquela semana. 

Nos comentários do vídeo, seu pai escreveu: “Esse aí é o programa Show da Tarde. Maceió, 1988. Participação de Augusto Frederico Junior, meu filho, meu presente de deus!”. E aquilo, aquelas palavras do pai, aquele apego a datas, fatos e ao afeto quebram Frederico de uma forma estranha. A única coisa que ele consegue fazer de novo é rever o vídeo, dessa vez se acha bonitinho cantando música brega, se acha dotado de certo carisma e desenvoltura.  Pensa ainda que se o pai tivesse tido um bar ou sido um criminoso, ele também iria detestar aquelas atividades. Ajudar naqueles ofícios. Só então sente vontade de chorar, mas não consegue, tenta repetir os exercícios de quando era ator mirim para ver se lhe caem algumas lagrimas, mas não consegue. 


domingo, 24 de janeiro de 2021

EM BUSCA DO SALGADINHO PERDIDO


 
 
Que a nostalgia, depois de pais ausentes, ressentimento e boletos atrasados são os maiores combustíveis para escritores sentarem a bunda numa cadeira e começarem a escrever, isso ninguém duvida. 
 
Tanto é que uma das cenas mais marcantes de toda a literatura acontece quando o protagonista de No Caminho de Swan, de Marcel Proust, está tomando chá com bolo - a tal da madelaine, muito famosa na terra do De Gaulle - e ele tem uma epifania que o faz rememorar toda a sua vida, tudo por causa do bolinho e do tempo livre do cidadão. Obviamente aqui o leitor mais arguto irá perceber pelo amontoado de clichês que usei, assim como a referencia a De Gaulle ao falar da França, que eu nunca li Proust, nem Em Busca do Tempo Perdido.
 
Mas dia desses experimentei algo muito parecido, foi uma breve volta aquela fase onde as meninas tratam os garotos (e com razão) como leprosos. No meu caso a maquina do tempo que me levou até o pátio da escola novamente foi algo menos refinado que um bolinho francês, mas nem por isso menos prejudicial aos dentes e a diabetes: A pipoca Pippo’s, sabor bacon. Peguei-a no caixa do supermercado apenas para arredondar a conta e ficou dias esquecida na gaveta tal qual aquela tia para quem nunca telefonamos no aniversário. Mas eis que um dia, feito o parente indesejado, topei com ela pela casa e disse: Porque não? 
 
O cheiro de bacon ao abrir o pacote já foi a primeira cacetada, senti a gritaria das outras crianças no recreio, e nos primeiros grãos mastigados... Pronto, lá estava eu de volta ao colégio, com o buço suado de tanto correr, as tetinhas quase furando a camisa escolar e as meias na canela, cada uma de uma cor, numa vã tentativa de originalidade mas que como sempre acontece na maioria das vezes, só faz você ficar parecendo um retardado. 
 
A velha sensação de pertencimento. 
A velha sensação de ter amigos. 
A velha sensação de não saber dar nome as angústias. 
 
Numa cena famosa de Mad Man, o bonitão lá fala que em grego, a palavra nostalgia “significa a dor de uma velha ferida, um aperto no coração mais poderoso que a própria memória”. 
 
Uma dessas feridas que esse gostinho de porcaria me trouxe, foi do Gildo, gordo feito uma vassoura, dizendo que o porco ia me matar, ele sempre dizia isso quando eu comprava a porra da pipoca. Eu era meio lerdo e não sabia que o bacon é um derivado do porco. Achava que o bacon e o porco na embalagem do salgadinho não tinham ligações, igual os alertas por trás das embalagens de cigarro que vendiam na cantina do colégio (na escola de vocês vendia cigarro também, né?), eu pensava que o bacon era só um nome para um sabor e que sabores eram só um amontoado de coisas que davam gosto a outras coisas que não existiam também, tipo tutti-frutti, tipo... A infância também.