quinta-feira, 9 de maio de 2013

O PASSADO QUE BUSCO



(R.Magritte)



Não.

Eu não vou aqui escrever sobre o que nos aconteceu aquela noite. Pode ficar tranquila, é como te disse. Mesmo sabendo que ao final, você iria me perguntar de novo. ‘Vai escrever sobre isso?’ – Acredite quando digo brincando que só escrevo após cinco anos. Tudo bem, você fez bem em não acreditar. Esses cinco anos ás vezes podem ser dois dias ou cinco minutos. Não quero te decepcionar mais essa vez, já bastou ontem a noite, já bastou sentir o vento seco da porta me dizendo tchau, e ver seu vulto me olhando de cima entre suas cortinas. Bastou a chuva que levei. Bastou a gripe que peguei. – Por isso, acredite em mim quando falo em validade.


Só consigo escrever olhando o passado. Em cena eu fico cego. Sempre. Não ache piegas, até ontem me achavas melhor que Vargas Llosa. Não foi assim? 


Foi olhando para trás foi que te descobri, lembra? Poderia agora escrever sobre isso, sobre o dia em que te conheci, só que esse, eu perdi; a inspiração, sim, essa já venceu, mas já não posso mais nada, pois expirou o prazo de validade das imagens quando te conheci. Só me lembro disso, de olhar para trás e te ver. Mas é só isso que lembro. Até repito o gesto aqui da virada de cabeça, mesmo sem a rua e sem a voz que me grita. Daqui só escuto uma dentro de mim. Só ouço o fim. O fim, e o ar-condicionado que você tanto detestava, é verdade! Ele tem um barulho de carro velho mesmo, você tinha razão quando pedia ele desligado, agora ele apita aqui, eu deixo, pois alguém tem de ficar feliz nesse deserto. Alguém tem que gritar.


Hoje vence um prazo que me dei para poder falar das outras, de outras que nunca te contei, mas tenho medo que você transborde para dentro delas também, as invada e me confunda quando for contar da pobre Lays e de seu sorriso torto, que pinte ela morena e alta. Tá vendo, você já agiu. Ela tinha seus seios... Continua agindo. Você vai rasgar todos os fotogramas afetivos dessas meninas, e se bobear, ainda vai rasgar os meninos, os que jogavam bola comigo, só por ciúmes. E daí não terei mais em quem pensar para me distrair ou lamentar. Pois assim, eles não terão nem existido. 


Também adoraria aqui, falar do susto que tive, ao conhecer um ex-sogro que tanto me metia medo, era uma lenda aquele homem, e era policia o meliante; criei uma imagem do infeliz assim: De enormes bigodes, cabeça raspada, rosto marcado e sangue nos olhos. Hoje o descobri: Tem meio metro, deve pesar uns cinquenta quilos, cinco só de cabeça e no meio uma cara de sagui; aquilo não deve meter medo em ninguém, aquilo na delegacia ou nas ruas é uma afronta a qualquer bandido, ter medo daquele homem, só um neste mundo. Por muito tempo ou no tempo daquela paixão, planejei contra ele, em roubar o que ele tinha de mais valioso. Ele não me conheceu, foi um romance proibido, proibido de ele me conhecer; por ele através dela, até pensei em aposentar meus brincos. Sim, veja! – Os que você dizia ser um charme. Por essa autoridade iria afrontar meu pai. Que detestava milico.


Sim! Seria perfeito aqui, falar eu de outro pai. Do meu. Contar do dia em que ele me comprou os brincos, por exemplo. Num passeio de carro, ele soltou: Por que você não usa brinco? Nem acreditei. Ele adoraria, mas falou não ter mais idade, corpo ou atitude. Eu queria usar dois ao ver um cantor na tv. Só pode um. Para que dois? Você não é artista ele me disse. Depois tirei o brinco, tirei e dei para aquela louca do sofá, uma que não te contei. Hoje uso dois. Meu pai não me viu subir num palco, nem leu ou ouviu alguma crônica minha. Muito menos eu usar duas argolinhas. Dividir uma cerveja como ele tanto queria, também não foi possível. Mas era engraçado meu pai. Fez um monte de gente sofrer, mas quem não fez? Não é? Não é? – Eu sei. Eu também faço. Mas quem não fez?


Talvez eu fale dele ou do outro pai. Ou dos pais que admirei. Só que hoje, você não vai deixar, assim como não vou poder contar das putas que beijei. Adoraria contar aqui, de uma, duas ou dez, só pra te irritar. – Mas seria mentira. Discorrer sobre a moça cinéfila, uma de nome Jasmim... Que você tanto detesta, seria maravilhoso também. Só que dela já escrevi. Mas Seria... Seria... 


Nesse passado que roubo, busco ou invento, daqui a pouco será meia noite, aí você já será ontem, já terá passado. E então você não me contaminara mais, pois a tal noite, será só uma lembrança. Será a noite de ontem. Tá vendo, é isso a última impressão que você deixou – Não, não foi no visor do meu celular que agora vejo brilhar, que agora por ser outro dia, vejo iluminar por ele suas digitais. Sua última impressão será você perguntando se vou escrever sobre o que nos aconteceu... Não, não vou. Aqui, vou contar que você nem existiu.
Cid Brasil



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