Era minha casa. Hoje é os
fundos de um deposito de construção. O antigo sitiozinho sem nome, hoje é um lugar
de nome pomposo – Sem árvores, sem cachorro e sem pés de pitanga. É triste que
aquele lugar palco de delírios de uma criança seja hoje atravessado por
caminhões, carroças e blocos. Triste para mim, e a alegre para o novo proprietário.
Aquele terreno sempre foi felicidade de um só; de dois solitários: O menino
ontem e esse homem de hoje.
O meu passado ali não
significa nada para ele e o presente dele ali não tem valor nenhum para mim.
Não há troca, não há sintonia entre nos dois, ele que já era adulto quando eu
habitava, nunca foi lá jogar futebol comigo, como vingança nunca comprei uma
caixa de fósforos em sua loja. Mantemos essa guerra fria unilateral. Há uma
imensa vitrine expondo as “ofertas da casa”, vejo meu reflexo triste pelo vidro
que ostenta capacetes de operários, luvas, um carrinho de mão, colheres de
pedreiro, pregos e parafusos de todos os tamanhos – que fariam a alegria da Macabéa
de Clarice. - E escondido, entre telhas de alumio vejo um ancinho... Que só muito
tempo depois, é que vim descobrir que o “galfo de barrer”, tinha esse nome tão
bobo e sem graça. A imagem do “galfo” me traz também o seu guia, o nosso
caseiro, zelador e meu amigo – Funções essas exercidas creio que naquele bairro
inteiro.
E me pego com uma saudade
imensa do João, pois ele sim representava uma parte de mim, de outros e daquele
lugar. Todas as noites de ano novo, ele começava cedinho a ir à casa dos amigos
deixar um feliz ano novo, pois todos eram seus “cumpades”, e não era raro
sempre o João virar o ano na festa de alguém ou no meio do caminho, mas não
importava aquele bairro era a sua casa. Era contagiante o bom João. Jogar
futebol com ele era um ato de democracia, todos eram convidados, ele conseguia
parar o universo de todo mundo, não importava se fosse o pedreiro de volta para
casa ou o morador que reclamava do nosso barulho, juntava o maloqueiro com o
policial da vizinhança na mesma linha, e todo mundo queria jogar no nosso time,
no time do João. E mesmo quando a bola furava ou não vinha, ninguém ia embora,
só quando o João fosse é que era a hora ir. E se o João não vinha ninguém ia, e
a rua ficava mais triste. Aquela antiga Rua Carlos Buarque, devia ser hoje Rua
do João. Talvez por isso, quando o João nos deixou, deixou todo mundo, e todo
mundo se mudou dali. Da Rua João.
João Sebastião da Silva era
o nome que tinha na certidão do homem que levou nossa domestica, que não sabia
trabalhar no domingo, que me chamava de Li por causa do Bruce Lee, tinha como
primeira “visage” da infância uma plantação de cana; ele não deixou filhos, não
sabia ler (segundo ele “só conhecia a letra ‘Ó’ por que sentava em cima de um”)
apenas plantou algumas árvores – que o empresário de hoje as derrubou; ele que
antes de ir tomar seu último banho perguntou o que seria dela, da sua esposa. Ele
que deixou aquele sitio, antes de sua venda, talvez por não suportar ver a sua
morte daquele lugar onde ele voltou a ser o menino que não pode. Na vitrine de
parafernálias, tem um adesivo: “Aqui tem de tudo”, e me retiro dali com a
certeza que não fazem mais Joãos como antigamente.
Aos dez anos, achava
orgulho uma palavra muito feia, mas é o que sinto ao ter conhecido o João.
Cid Brasil
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