(Gerard Dubois) |
Vinha eu pela casa, misturando breves
ilusões com poesias: Me sentindo um ‘acendedor de lampiões’ que antecipa sua
tarefa devido a hora, ia assoprando as luzes que me restavam daquela madrugada.
Já no banheiro, na última lâmpada, entre o interruptor final e a escuridão, senti o dorso da mão bater em algo.
Ao acender a luz, percebi os cacos do
meu gesto desastrado. Rodeado por aquele campo minado, pensei ter acordado ali meio
mundo, por um momento ainda ouvia o silêncio de pálpebras cerradas. Era ali, mais
uma coisa que tinha de limpar, mais um vacilo para consertar. Não podia deixar
aquilo para outro dia. Ao me ajoelhar, já não pensava em poesia, desci. Pensando
nas desculpas que devia.
As palavras que mais doíam, eram
sempre as gritadas. Aquelas faladas em caixa altas. – Isso era o que eu pensava
antes. Antes daquele som e do seu resultado.
Recolhi primeiro a base da taça, que
com a queda se transformou numa coroa afiada. Foi a parte mais fácil. O mais
saco, o mais difícil foi recolher os pequenos cacos ali embaixo da pia. Do alto
da pia, lá de cima ou do passado, era difícil entender que o que mais doía na
verdade eram aquelas coisas ditas baixinhas. Os caquinhos. Provava isso agora nos
joelhos, na ponta dos dedos e na consciência.
Eram duas horas da manhã, enquanto um
rapaz ia lendo em braile letras afiadas, tateando nas entrelinhas o que já
havia dito para uma moça. De outro ponto, eu confundia cacos com gotas d’água,
passei a mão por eles rezando serem gotas do chuveiro e não lágrimas
petrificadas.
Aquela finada taça foi a mais didática
das aulas: Ensinava e castigava ao mesmo tempo.
***
Enquanto isso, eu falava alto comigo
mesmo. E para que os vidros não ferissem mais ninguém, enrolei-os numa folha de
jornal. Enrolei meus cacos em novas palavras. Igual minhas desculpas, umas que
devia meia hora antes. Embrulhei o grito da taça e mandei-os para o lixo. O pedido
de perdão... – Para alguém. Foram dois
pentimentos materializados naquele ato. Não sei se outros pedaços desceram
sozinhos pelo ralo, espero que sim, igual alguma de minhas antigas palavras, só
que noutro ralo chamado esquecimento.
Embora saiba que haverá entre as
frestas do piso e da alma, sobras que me farão lembrar sempre do que derramei.
– Como todos os dias. No final, fui dormir pensando no que me esperava para o
dia seguinte. Finalmente apaguei a última lâmpada.
***
No dia seguinte não obtive respostas.
Mesmo assim todos aqui em casa diziam que acordei diferente, com outra cara, que
passei o dia aparentando estar bem... Ninguém perguntou o porquê, se tivessem
me indagado, eu responderia apenas: “Foi por causa de uma taça que derrubei”.
Cid Brasil
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