(Michel Nash) |
“Talvez só podemos ser realmente babacas uma vez na vida...
Só uma. Me refiro a algo que nos fará chegar até o último dia lamentando... Eu
já realizei a minha, e esse é o único consolo que tenho.”
Tio Florisberto não quis falar muito sobre. O paragrafo acima
foi me dito cheio de reticências, pausas e mudanças bruscas de assunto: “E o
Flamengo, hein?”, “Poxa, esse ano será longo: Copa do Mundo e eleições...”,
“Você viu o novo filme de Brian de Palma?”. Talvez, o Tio Flori, como agente
costuma chama-lo, quisesse que eu embarcasse num desse assuntos e o deixasse em
paz (ou em tormenta) com seu arrependimento mor. Era a primeira vez que conversava
com ele pessoalmente. Noticias suas só me chegavam pela boca de meu pai através
de fotos, ou de cartões postais que ele mandava de lugares que nunca visitou e
diferentes de onde estava, como Madri ou Xangai – “Só por que achava bonito a
paisagem, e claro, por que não tinha fotos minhas...”, desconversava.
Retratos dele há vários aqui em casa, em todos ainda esbanja
um sorriso dentuço e uma cabeleira amarela; outros ele me mostrou no celular e
duas pequenas dobradas ao meio retiradas da carteira. Ao ver a última foto, com
uma leve marca d’água de 1998, lembro de outras suas que vi na última experiência
genealógica que empreendi por gavetas e armários daqui de casa, após uma
discussão de uma hora com meu irmão sobre eu ter possuído uma casa na árvore
quando criança. – Dela, da mansão do abacateiro, eu recordava de maneira viva
de pelo menos o piso, com seu chão todo rente, feito de fórmica... Para minha
desilusão, só cheguei a pregar o primeiro degrau. Deve ser mal de família, pois
dos retratos em preto e branco das várias vidas do meu tio inédito, sempre
estava ele com semblante tranquilo, tendo como cenário uma casa sem reboco, de paredes
com os tijolos ainda a mostra. Meu parente que nunca se terminava. Depois,
achava outra foto dele, ora segurando uma criança ora abraçada a alguma mulher,
e cada vez mais seus cabelos louros rareando e em todas as casas lá,
recém-construídas, com pouca mobília e muita esperança nos sorrisos e olhares.
Deve mesmo ser genético. Eu comecei tanta coisa que não
terminei, e por vezes alimento uma gastrite por mulheres e projetos artísticos
inacabados. Mas será que o tio sem reboco ao meu lado se pergunta aos 71 “meu
deus, o que fiz da vida?”. Nos dez minutos em que ficamos conversando, os
únicos de nossas vidas, durante o churrasco de boas vindas, aniversários
atrasados e já de boa viagem para ele, cantamos só um parabéns e tiramos uma
foto. Ou melhor, tiraram uma foto dele
de supetão, nela é possível vê-lo sentado ainda com uma cara de surpresa pelo
bolo de chocolate inesperado (e indesejado, já que ele detesta bolo confeitado)
– Do seu lado, estou eu, bem mais novo, mais gordo e com menos bom gosto nas
roupas, ainda a olha-lo, na espera de que ele contasse qual o seu maior
arrependimento.
***
Nessa manhã chegou um postal dele, com uma ilustração da
torre de Pisa na Itália, – atrás ele me saúda, perguntado como vai o poeta da
casa e se já casei. Nunca escrevi nenhum verso publicável, e nem a única casa
que desejei consegui terminar – o cartão vem do interior do Paraná, junto de
outra foto do Tio Florisberto em outra casa recém-construída, e com uma carta
onde ele conta que seu maior arrependimento foi não ter se casado com uma aero
moça que ele conheceu. – Finalmente está explicado os postais...
Cid Brasil
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