(María María Acha-Kutscher) |
Há um ano, eu deveria ter acabado de assistir a “Festa de Babette”
no DVD, e ter dado o meu natal por satisfeito. Pra quem não viu, creio que não
há noite perfeita, dependendo da companhia ou da solitude. Há um ano, eu sequer
sonhava – Bom, na verdade eu sonhava sim, mas não ousava – em escrever:
Crônicas, romances ou sequer e-mails decentes para os amigos.
Hoje, ainda fico devendo no quesito referente a correspondências. O
que não quer dizer o mesmo em relação a espalhar umas mesquinharias pelo papel
e dar a isso o nome de crônicas, ou até mesmo de estar a quase seis meses adoecendo
e gozando por um livro, e vendo que meu ano vindouro será todo dedicado a isso:
Escrever. Abandonei algumas coisas esse ano, tudo para aprimorar algo que me dá
prazer (e uma angústia) na mesma medida, uma coisa que até o ano passado eu
dizia que não fazia, por respeitar demais a literatura. Dia desses li um livro
de correspondências do escritor francês Gustave Flaubert, e num dos trechos onde
o autor de Educação Sentimental, falava para os amigos – Ele sim era além de
escritor de verdade, óbvio, era um grande missivista, assim como todo escritor
decente -, mas lá ele contava nos intervalos de seus romances (escreveu ‘só’
quatro romances, uma novela e um livro de contos, digo só em se tratando que
ele dedicou setenta anos dos quase oitenta que vive apenas a escrever), sim, lá
Flaubert falava não só das agruras quase físicas que seus romances o infligiam,
como das desistências de um estilo de vida burguês, que incluía a família e Paris
no inicio da Belle Époque; além das moçoilas, fanzocas, tietes e também
não fazia questão da companhia de gente como Victor Hugo, Charles Baudeleire e Émile
Zola.
Numa das cartas, para uma moça a quem ele chamava de Musa, ainda
que quase intocável, ele diz: “Tenho um monte de gostos (...) dos quais me
privo; mas é preciso privar-se de tudo quando se quer fazer alguma coisa. Ah!
Que vícios eu teria se não escrevesse!” Noutra, a única em todo o livro datada
do dia 24 de dezembro (de 1862), ele escreve a um critico rebatendo todos os
pontos do cidadão sobre um de seus livros (Salammbô). O
cara já era Flaubert, e mesmo assim não gastava o vigésimo quarto dia do mês
doze em destrinchar um Peru com farofa, mas sim em descascar um idiota que
ousou lhe acusar de ‘incensado’.
O pobrezinho morreu (pobre) e possivelmente de tanto escrever –
Faleceu de hemorragia cerebral -. Se a dona Neide do 501 aqui do prédio o
conhecesse, diria: “Ele se gastou”. Mesmo assim foi a vida que quis, e muitas
vezes deixava claro que não queria, principalmente depois dos processos e
explicações que teve de dar após lançar Madame Bovary, escrever para a
posterioridade, fazia aquilo apenas para se distrair de toda a vulgaridade,
banalidade e vazio que era, e é, a existência humana. Achava a vida tão
horrorosa que a única maneira de se distrair dela, era evitando-a.
Um grande sujeito Flaubert. Não ouso chegar aí, visto que passei
meu último natal assistindo televisão, embora esse tenha gasto quatro horas
deles escrevendo esta crônica e parte do meu romance. Mas, por via das dúvidas,
vou ali esquentar um pedaço de pernil no micro ondas.
Cid Brasil
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