quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

ELA



 
(Edward Hopper)
 
Antes dela eu achava que os livros de poesia gastavam muito papel, entende? Aí ela me explicou que todo aquele espaço nas páginas eram os silêncios, o vácuo, o vazio que fica em quem está lendo, por causa da beleza, ou da melancolia, ou dos dois que no fundo são duas coisas tristes também, não é? Ela me ensinou também que nas noites com insônia, pensasse sempre numa mão segurando a minha, que fosse desenhando, imaginando cada detalhe, como se havia esmalte nas unhas, se era a direita, se era grande, branca, enfim... Uma mão. Tinha lido isso num livro da Clarice, acho que foi A Paixão Segundo G.H, nunca contei que a mão que a minha segurava nas noites a beira de um ataque nervoso, ou de poucas horas para o dia amanhecer era sempre a dela, são sempre aquela: Sem esmaltes, pequena e branca. O interessante que quando nos dormíamos juntos eu não segurava a mão, mas ela toda, embora nunca dormisse porque nunca consegui dormir ao lado de ninguém. Mas isso foi no começo, depois que casamos fui me acostumando. É agente se acostuma com tudo nessa vida, não é? Como? Você pensa em escrever um romance que começa com essa frase? Que bom... Ela lia muito, lia demais, lia até esses poemas ruins que os caras vendem na praia por um real, presos com um grampo enferrujado por causa da maresia, fazia isso por respeito àquela alma errante e bela, bela só porque fazia algo que muitos sequer tentavam, só porque simplesmente se sentavam para fazer algo pelos outros, dizia... Foi ela quem me incentivou a escrever, disse que eu tinha algo chamado alma, sensibilidade... Mas eu só gosto de escrever letras de músicas, sabe? E também não gosto de ler romances por que depois que ela se foi eu fico ansioso, achando que vou viver aquilo, ou pior, que de alguma forma já vivi... É, é o meu luto. Mas agora escrevo, há dois anos que escrevo para ela todas as noites, depois a transformo em personagens de minhas músicas, e ninguém nota, ás vezes nem eu noto quando apresento as letras para os amigos. Mas o pior é a cama vazia, aquilo é um oceano... Eita, falei demais, agora vou deixar você almoçar Cid, me desculpe, bom apetite!

Bernardo, eu transformei você em personagem de crônica, e até de meu romance, espero que não se importe... 

Só quando ele já está de costas é que digo isso.

Cid Brasil

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