(Bookstore ruined by an air raid, London 1940 - Autor desconhecido) |
“Tenho até receio de como será comer pitangas novamente”. E ele contrai
as sobrancelhas ao me ouvir dizer isso.
Antes de lembrar onde ficava meu último pé de pitanga, eu iria
começar aqui dizendo: “Sorte daqueles que ainda moram na mesma casa desde
criança”. Mas não. Talvez também ninguém seja feliz no terreno ou nos escombros
de suas lembranças ainda eretas. Só as casas da infância persistem. Ir
crescendo a mediada que os cômodos e sua imaginação vão diminuindo até o tamanho
real (e chato) das coisas, é ir também demolindo sua antiga casa de outra
maneira.
Uma casa foi demolida recentemente por onde passo. Não me lembro
como ela era antes, não prestava atenção nas suas portas e qual sua antiga cor.
Hoje só sei que ela é amarela por causa dos restos de reboco. Ainda estão por
lá os pedaços de pau, tijolos e telhas formando um quebra-cabeça impossível
para mim. Torço para que a criança que morava nessa esquina não tenha visto sua
casa morrer.
Sempre fico desconcertado ao ver uma casa demolida. Pois aquela
casa só existira na memória dos outros agora.
Vendo as raízes que denotam os antigos cômodos dessa casa me sinto
um analfabeto. São contos invisíveis, haicais e fabulas ocultas no ar. Nem
mesmo seu antigo dono é capaz de falar sobre aquele lugar, por mais que agora
ele tente. Só a criança que habitou aqueles escombros poderá traduzir aquele
idioma etéreo.
***
Eu também não vi minha casa ser demolida, no entanto toda a vez que
sonho, a palavra ‘casa’ me leva para a Rua Carlos Buarque. Mangueiras,
goiabeiras, jaqueiras e ‘brincos de viúva’ (azeitona preta); um pé de acerola,
um de limão e um pezinho seco de pitanga cercavam a casa azul. Eu detestava manga
e goiaba, e desde que derrubaram aquelas árvores, eu nunca mais comi nenhuma
daquelas frutas que lá existiam. – É meu pequeno luto inconsciente. De todos
aqueles, sinto uma saudade incrível de comer pitanga. Dia desses li uma crônica do Rubem Braga que falava sobre um pé de pitanga na sua casa... Foi como ir lá
e comer mesmo as verdes antes da época.
Eu estava lá no dia em que derrubaram todas as árvores da metade da
minha casa, antes de passarem um muro dividindo o terreno tiveram de matar
todos os pés de brinco de viúva e uma mangueira cinquentenária. Brinquei a
tarde inteira na copa daquelas árvores caídas mais velhas que eu. Fazia aquilo
para dar um sentido para todas as dores futuras, como acho que toda criança faz.
Eu e o filho da empregada transformamos aquilo numa selva.
É só o que me lembro daquela tarde. É minha última imagem como
criança.
Quando passaram um muro dias depois, o pezinho seco de pitangas ficou no
limite.
Adoraria conhecer a criança que desenhou esse sol nos resto de uma
parede que agora encaro. Talvez ele tenha sido uma criança trancafiada por
morar num bairro de periferia e com isso ter desenhado um sol só para ele (ainda
que oval), mas só dele. Agora é o momento de ver esse menino. Depois será
tarde, depois talvez ele só reclame que seu pai vendeu barato um terreno tão
bem localizado... Depois, será como reencontrar o melhor amigo da infância e
falar sobre pés de pitanga em nossas fronteiras...
Por ora, precisamos ser eternamente como você: Caro menino do sol oval.
Cid Brasil
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