domingo, 6 de julho de 2014

ESCREVINHADOR


(Franco Matticchio)



Sou um escritor acidental, disse-me ele pondo sua vasilha cheia de comida na bolsa. Ao ouvir isso pedi que esperasse, antes, me parecia apenas um louco limpo, um vagabundo barbeado e banhado. Perguntei então o que ele escrevia. Não soube responder. Fui dizendo os gêneros e ele fisgou o que melhor servia a seus escritos: Crônicas. Na verdade eram mais pensamentos de sua cabeça confusa, artigos do nada para o nada, folhas preenchidas com batimentos cardíacos de atleta. Tudo escrito numa letra apressada e típica de quem realmente escreve. Das duas folhas que tentei ler, apenas duas palavras me ficaram: Crimes e colarinho branco. Fui nesse caminho. E então se pôs a explicar que tinha enviado aquele texto (o que eu tinha em mãos era um rascunho), em duas vias, para o ministério público estadual, porque o proibiram, ou pelo menos assim me garantiu, estar proibido de entrar em oito bibliotecas públicas de Maceió.

-- E existe tudo isso de biblioteca nessa cidade? – Perguntei.
-- Ó, existem até mais! – Garantiu Carlos.

Por um momento esperei que ele as enumerasse feito um personagem (como de fato é) do escritor Chileno Roberto Bolaño e dissesse: As bibliotecas invisíveis, as que ainda não fomos e as bibliotecas fantasmas. Mas não.

Chama-se Carlos, o “escritor acidental” é Mineiro e não sei como veio parar em Maceió. Após tê-lo conhecido, gosto de pensar que ele entrou em algum portal numa biblioteca fantasma de Belo Horizonte, ao passar por obras enfileiradas de Borges e Casares se viu nos corredores da Universidade Federal de Alagoas, sem se importar de passar todos os dias ali, exceto claro, os domingos, escrevendo e consultando gente cascuda como o Marx, Engels e Pascal. É um tipo simpático, franzino e sorridente, deve ter uns cinquenta anos e não me espantaria se figurasse no álbum de fotos de alguma criança com sotaque engraçado, apontado nesse momento como Tio Carlos, que leu tanto e endoidou, como gostam de dizer por aí.

Porém Carlos me disse não ter família e pareceu revoltado quando perguntei isso. Também revelou que não costuma pedir comida duas vezes no mesmo restaurante, para evitar que o envenenem. Quem? Os engravatados me disse. Na segunda, e obviamente, última vez em que apareceu no restaurante que trabalho, apertou minha mão e vi que seus dedos estavam azuis, com sangue de sua caneta e de seus escritos. Produzi muito hoje, revelou-me contente. Quis saber mais: Onde morava? No mundo, respondeu. No momento numa rua do bairro do Farol, na porta de uma loja de informática. Antes de ir, fechou o rosto e me contou que aquele não era um bom dia, pois tinha sido molestado. Também admitiu ter medo da policia, pois onde dorme, na outra esquina circulam uns drogados e ele acha que qualquer dia vão leva-lo como usuário de crack e lhe arranjar uma folha com crimes dos quais nem em seus escritos ele irá cometer.

Está noite passei onde Carlos, o escrevinhador, disse morar. Não havia ninguém. Se o deus em que acredito só protege as crianças, os bêbados e os velhinhos com Alzheimer. Que proteja também os loucos do bem.


Cid Brasil

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