domingo, 13 de julho de 2014

CECÍLIA


(Jan De Maesschalck)



Ela já não estava mais na idade de acreditar em diplomas que abrem brechas nas jaulas do futuro. Eu naquela época sim. Todos com quinze, dezesseis anos, e ela com cinquenta e dois encarava aquela sala com a hombridade dos que vão para a guerra sem qualquer objetivo que não o de ainda estar respirando ao final. Cecília sempre fazia questão de sentar-se ao meu lado desde o primeiro dia (depois dela, eu era o mais velho da turma de Espanhol: Libro I). Assim como nos intervalos onde o único passatempo da turma era brincar com os gatos ou esperar as mangas despencarem de árvores mortas, ela procurava distrair-se ouvindo minhas piadas ou meus blefes em relação a vida, e dizia simpatizar comigo pois eu era o único que parecia não ter objetivos que envolvessem dinheiro ou a fuga de algo com a língua espanhola.

Eu achava o espanhol – e ainda acho – uma língua muito bonita de se falar. Revelei que se um dia lesse qualquer escritor latino no original, também já estaria feliz. Cecilia disse que eu leria muitos, pois isso era o mais fácil, mas nunca contou qual seu “objetivo inútil” com o espanhol.  Poucos dias depois ela sumiu das aulas.

Perguntei para todos sobre Dona Cecilia – como nos a chamávamos – e apenas a recepcionista soube informar seu paradeiro, disse que ela tinha trancado a matricula durante as férias de janeiro alegando como motivo uma viagem que duraria muitos dias, talvez até anos, sem contar para onde ou quanto tempo ficaria fora desse lugar que ninguém abandona chamado Maceió. Como me parecia óbvio, imaginei minha colega embarcando para algum país que falasse a língua que falávamos feito crianças de seis anos com deficiência mental. 

Um mês depois também desisti daquele curso.

***

Está noite, após a final da copa do mundo entre Alemanha e Argentina, vendo as pessoas pela televisão caminhando (em sua maioria os Argentinos) e (alguns brasileiros) celebrando por Copacabana, no passeio que a câmera fez pela orla do Rio de Janeiro, por três segundos o rosto de Dona Cecilia foi focalizado: Ela passou atrás de um casal que se beijava, vestia uma camisa preta, tinha os cabelos amarrados e eles estavam mais brancos do que eu me lembrava. Parecia cansada. Triste e cansada. Parecia também procurar algo ou alguém no meio da multidão.

Imaginei-a, desde 2005, buscando um filho ou uma filha ou um amor desaparecido a muito tempo, e que as semanas que passamos constituía apenas numa pequena preparação para sua busca. Sua aparição foi rápida, mesmo assim flagrou sua melancólica elegância. Logo em seguida a televisão já perseguia torcedores alemães que sorriam.  Dona Cecilia, que continua bonita apesar dos pesares, sumiu mais uma vez.

Imaginei também ela lendo essa crônica em alguma livraria do futuro ou em algum alfarrábio do passado, experimentando a mesma sensação que eu: A de que nas fotografias de festas, assim como nos livros e nas salas de aula, haverá sempre aqueles que parecem nunca estar ali.

Cid Brasil

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