terça-feira, 24 de dezembro de 2013

O NATAL DE FLAUBERT



(María María Acha-Kutscher)



Há um ano, eu deveria ter acabado de assistir a “Festa de Babette” no DVD, e ter dado o meu natal por satisfeito. Pra quem não viu, creio que não há noite perfeita, dependendo da companhia ou da solitude. Há um ano, eu sequer sonhava – Bom, na verdade eu sonhava sim, mas não ousava – em escrever: Crônicas, romances ou sequer e-mails decentes para os amigos. 

Hoje, ainda fico devendo no quesito referente a correspondências. O que não quer dizer o mesmo em relação a espalhar umas mesquinharias pelo papel e dar a isso o nome de crônicas, ou até mesmo de estar a quase seis meses adoecendo e gozando por um livro, e vendo que meu ano vindouro será todo dedicado a isso: Escrever. Abandonei algumas coisas esse ano, tudo para aprimorar algo que me dá prazer (e uma angústia) na mesma medida, uma coisa que até o ano passado eu dizia que não fazia, por respeitar demais a literatura. Dia desses li um livro de correspondências do escritor francês Gustave Flaubert, e num dos trechos onde o autor de Educação Sentimental, falava para os amigos – Ele sim era além de escritor de verdade, óbvio, era um grande missivista, assim como todo escritor decente -, mas lá ele contava nos intervalos de seus romances (escreveu ‘só’ quatro romances, uma novela e um livro de contos, digo só em se tratando que ele dedicou setenta anos dos quase oitenta que vive apenas a escrever), sim, lá Flaubert falava não só das agruras quase físicas que seus romances o infligiam, como das desistências de um estilo de vida burguês, que incluía a família e Paris no inicio da Belle Époque; além das moçoilas, fanzocas, tietes e também não fazia questão da companhia de gente como Victor Hugo, Charles Baudeleire e Émile Zola.

Numa das cartas, para uma moça a quem ele chamava de Musa, ainda que quase intocável, ele diz: “Tenho um monte de gostos (...) dos quais me privo; mas é preciso privar-se de tudo quando se quer fazer alguma coisa. Ah! Que vícios eu teria se não escrevesse!” Noutra, a única em todo o livro datada do dia 24 de dezembro (de 1862), ele escreve a um critico rebatendo todos os pontos do cidadão sobre um de seus livros (Salammbô). O cara já era Flaubert, e mesmo assim não gastava o vigésimo quarto dia do mês doze em destrinchar um Peru com farofa, mas sim em descascar um idiota que ousou lhe acusar de ‘incensado’.

O pobrezinho morreu (pobre) e possivelmente de tanto escrever – Faleceu de hemorragia cerebral -. Se a dona Neide do 501 aqui do prédio o conhecesse, diria: “Ele se gastou”. Mesmo assim foi a vida que quis, e muitas vezes deixava claro que não queria, principalmente depois dos processos e explicações que teve de dar após lançar Madame Bovary, escrever para a posterioridade, fazia aquilo apenas para se distrair de toda a vulgaridade, banalidade e vazio que era, e é, a existência humana. Achava a vida tão horrorosa que a única maneira de se distrair dela, era evitando-a.

Um grande sujeito Flaubert. Não ouso chegar aí, visto que passei meu último natal assistindo televisão, embora esse tenha gasto quatro horas deles escrevendo esta crônica e parte do meu romance. Mas, por via das dúvidas, vou ali esquentar um pedaço de pernil no micro ondas.

Cid Brasil

domingo, 22 de dezembro de 2013

NEM AQUI


(Brad Holland)



-- Você por aqui?

-- Ué? Qual o problema? Isso é um ônibus, hoje é segunda, seis e meia da noite. Todo mundo está aqui.

-- Ah, tá. Agora essa? Nunca vi você andar de ônibus...

-- Agora ando. Ou melhor: Fico parado em ônibus. E outra! Esse é o único lugar em que posso conversar contigo já que não atende minhas ligações e nem responde minhas mensagens.

-- Então? Diga o que você quer? Voltar? A única maneira de voltarmos é só esse ônibus fizer o retorno agora mesmo. De resto, se você quiser recomeçar procure outra Jasmim.

-- Mas você já é outra Jasmim. Já se passaram dois anos...

-- E você suponho que seja outro Alcindo, não é mesmo? Só que outro fazendo as mesmas criancices do velho Alcindo: Me seguindo, me ligando no natal e no meu aniversário, me mandando mensagens de madrugada...

-- Mas eu sei que você não quer voltar, Jasmim.

-- E o que você quer? Espere: Recomeçar?

-- Não. Eu só queria te ver, te enxergar assim mais de perto, ouvir tua voz, ver essas mechas que você fez no cabelo... Sabe por que? Por que nos meus sonhos já parece outra Jasmim, uma que é a cara da Charlote Gainsbourg.

-- Esse é o seu problema Alcindo. Você leu demais...

-- Não entendo. Se a pessoa lê demais se estraga; se ama demais se estraga; se dá muito a bunda se estraga; se fuma muita maconha se estraga; se malha demais se estraga; tudo demais se estraga... Qual é o problema?

-- Café... Café demais também estraga, acabou com meu estomago.

-- O que?

-- Nada, Alcindo, sabe o que é? Eu não quero que você viva uma ilusão.

-- Se de por satisfeita então. Acabo de perder uma grande agora.

-- ?

-- Agora, a moça com a cara da Charlote Gainsbourg que interpreta você nos meus sonhos, será uma completa idiota, e depois é provável que no sonho de hoje, todas essas pessoas se revoltem contra mim e queiram me bater. Ou na pior das hipóteses, entre no meio desse diálogo um assaltante.

Nesse momento escuto um motor roncar, uma criança chorar e sinto um calor insuportável. Duas meninas com cara de shopping e um moço com cara de domingo me olham de canto de olho e trocam olhares galhofeiros, devo ter dormido de boca aberta. Triste realidade... Já nem a beijo mais. Nem em sonhos. Nem em crônicas...

Cid Brasil

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

ARMARINHO MARAVILHA


(Henri de Toulouse-Lautrec)



Ajeitou os seios que cansavam o tomara que caia, mirou aquela moça branca cheia de sardas e disse que Magali não era um bom nome para uma prostituta, “não dá tesão mulher!”. Mesmo assim Magali quis ser Magali também ali; não viu sentido em usar tudo da Magali naquele lugar menos o nome. “Por que outro nome? Mudava alguma coisa?”, se perguntou enquanto recebia a nova farda: Minúscula, uns dois números a menos e de cores quentes contrastantes. E as instruções: “Ao fim do dia, vinte por cento do apurado fica com a casa, para custear as despesas.” 

Não tinha o que esconder, das cinco da manhã até o meio dia vendia pastéis na porta de uma faculdade, e de lá agora partia para a nova função, que rendia um pouco mais. Cobrava quarenta reais para ouvir e se deitar com qualquer um. “Trepar mulher; que se deitar, se deitar agente se deita sozinha!”, escrachou a ‘Madrinha’, como era conhecida a grandalhona, dona daquele lugar que não era apenas um bar, nem só bordel e tampouco casa de massagem como anunciava o cartão – Embora dentro fosse tudo isso -, e a crise de identidade se estendia bem além de sua fachada de simples residência, perseguia até os que ali entravam, quando meses depois ao chegar nas faturas os valores de um certo: “Armarinho Maravilha”. Todo mundo ali parecia ter o que esconder, até a ‘Madrinha’, que já não tinha nem corpo, nem seios, nem ancas e muito menos idade para tão pouco pano.

O primeiro cliente de Magali foi uma constante dos outros. “Até aqui eles mentem?”, comentou com Valmira/Pâmela. Todos que nos quartos entravam eram casados, importantes e carinhosos, mesmo aqueles sem marca de aliança, sem marca nas roupas e sem marcas nos lábios. Por vezes aconteceu de alguns meninos, clientes seus da manhã, dos pastéis, aparecerem lá; assim, como aqueles nem tão meninos e nem tão simpáticos dizerem cheios de pudor: “Você por aqui?” e ouvirem a mesma coisa de Magali, só num tom mais cínico e espontâneo.

A única coisa que Magali tinha de esconder era a idade, e também seu sonho de um dia chegar finalmente a juntar o valor pedido pela justiça para soltar o seu pai. As sextas gostava de ver a ‘Madrinha’ bem humorada por ver a casa e o sofá cheio, soltar piadas, a melhor até agora havia sido: “Daqui a uns anos agente vai vender é beijo na boca, e a macharada vai perguntar, toda apaixonada, se agente também trepa!”

Cid Brasil