(Salvador Dalí) |
Era
alguém.
E sendo
assim, um dia percebeu seu relógio parado: Apontando dois caminhos: Eram seis
horas. Antes dali e das seis sempre acontecia de esquecer-se das horas e dos
dias, como todo mundo de segunda e sexta-feira. Naquele dia – O único que
chamaria de dia até uma quarta no futuro, não ousou trocar a bateria. E ele,
que era alguém, passou a não querer saber mais em qual dia a vida estava. Pelo
menos naquele em que se encontrava de relógio morto. No outro também não quis
saber, e também no outro e no outro...
Trabalhava
carimbado papeis, mesmo sem querer saber o nome dos dias, foi indo trabalhar a
cada vez que acordava, até perder seu emprego quando imaginou estar em plena
folga.
E foi
se distanciando dos meses e daqueles de espírito prático aos poucos.
Um dia
ou tarde ou noite, enquanto almoçava, ouviu o telefone tocar: Era sua mãe lhe
desejando feliz ano novo de madrugada, ainda mastigando ouviu os fogos de
artifício do outro lado da linha e teve receio de perguntar qual era o ano
velho e qual o novo.
Seu
calendário na parede virou caderno de desenhos: Fez doze mosaicos.
Uma
tarde ou dia ou noite, achou outras folhas em branco pela casa. E ele, que era
alguém que escrevia apenas entre os vãos do tempo e dos metrôs, passou a ser
alguém que apenas escrevia. Seus sonhos também se tornaram iconoclastas do tempo
com a falta de tempo, e assim passou a não dividir mais a vida entre dormir e
acordar. Os dias que já não eram mais dias passaram a se confundir ainda mais:
Agora com as mentiras que ele tatuava no papel. Chamava tudo isso de viver.
(Para
aqueles de espírito prático, que necessitam de fatos: Ele estava vivendo de seu
seguro desemprego).
Era
alguém.
E mesmo
assim, precisava de um dia de ontem para consultar, para saber o antes e o
depois dentro das lembranças. Pautava-se pelas moças que conheceu e pelos
livros que leu, quando tinha de recorrer ao passado: Começou por lembrar que o
‘Pequeno Príncipe’ lhe foi emprestado por Miriam dona do primeiro beijo; chegou
até Sandra e os pecados por ela cometidos, como os de ler ‘O Alquimista, O
Zahir e Onze Minutos’ e o diário de um mago de espírito prático... ‘Lolita’ foi
Mariana, mesmo ela achando que ‘Lolita’ era o nome de um docinho; o ‘Encontro
Marcado’ o levou a Jasmim; Capitu, Dulcineia e Carlota foram lidas em companhia
de ‘Dom Casmurro’, ‘Dom Quixote’ e ‘Werther’... Francisca tomou o seu Neruda
emprestado, e como na música: Nunca leu...
Algumas
reticências depois, enquanto estava escovando os dentes e consultando esses
fatos, se perguntou se ele próprio não seria criação literária de outro alguém.
Passou a escrever uma espécie de diário no futuro, e só punha ‘fim’ no que ele
chamava de ‘crônicas’ naquela espécie de diário da frente, quando estava com
muito sono.
Outras
pessoas, as que mantinham o relógio funcionando, mas que não eram apenas de
espírito prático e sim de espíritos com cara de sexta-feira, usavam expressões
sem a ironia dos de espírito prático quando o viam: “Nossa, você está bem, parece até mais orientado...”.
A vida
nunca havia sido tão rica quanto aqueles dias em que se livrou do nome dos dias
e da pilha dos relógios; reutilizou palavras obsoletas: Domingo tinha virado
uma espécie de sentimento; batizou as pessoas de espirito prático, com o nome
de ‘os de segunda-feira’; os livros na estante passaram a ser memoriais e os de
amanhã os que iria escrever; o ontem usava quando queria contar coisas antes do
seu nascimento. O relógio agora era um oráculo e não mais um patrão com suas
setas para frente e para trás.
Essas
páginas em branco duraram quatro ou cinco ligações de sua mãe lhe desejando ‘feliz
ano novo’. Foi na sexta ou sétima ligação de novo ano, entre um bife à milanesa
e um alô que se perguntou se não estava ficando louco. Foi a sua ruína: Pois
descobriu assim o dia em que estava.
Os de
segunda-feira vibravam do outro lado da linha e dos dias.
Os de
sexta-feira, bom... Estavam curtindo o feriado e não ligavam para alguém que
não estivesse nos feriados.
Era quarta-feira.
Quarta-feira. Quarta-feira...
Para
muitos apenas mais uma na vida de alguém...
Nessa
mesma quarta-feira, há meia noite do primeiro dia de 2021, se viu sem bateria...
E já tendo tomado ciência novamente do mundo e de suas engrenagens, percebeu
que tudo não passou de uma epifania entre a sala e o banheiro. Olhou o relógio
mais uma vez, e os dois ponteiros apontavam para frente. Escreveu dois minutos
depois uma historinha meio fábula, meio crônica sobre alguém que se esqueceu do
nome dos dias e dos meses... Na historinha meio fábula, meio crônica que escreveu
o personagem principal tinha um relógio parado que o fez funcionar melhor; na
historinha o personagem principal, que era alguém, nunca atendeu ao telefone
enquanto almoçava nas noites de ano novo, e se perdeu para sempre.
(Os de
segunda-feira nunca entenderam aquele final).
Cid
Brasil
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