domingo, 13 de dezembro de 2020

CHURRASCARIA SAL E MIRAGEM

(Zhiyong Jing, sobre obra de Edward Hooper)

 

-- Oxe... E não é que a porra da carne é invisível mesmo!

Já escaldado de ouvir esse tipo de comentário desde que o patrão adotou esse tipo de “carne que só os inteligentes conseguem ver e saborear”, o garçom mantêm sua expressão neutra a cada novo frequentador. Ele sabe, melhor que ninguém, que o melhor elogio a casa é o retorno do cliente. Somente ao terminar de dispor os acompanhamentos na mesa é que ele sorri e enquanto desliza a mão rente ao espeto vazio diz que o sabor do churrasco invisível é de fato muito marcante: Experimentem! Qualquer coisa, meu nome é Samuel; ao seu dispor.

O cliente olha para sua esposa e esbanjando a típica praticidade da espécie vai logo se servindo dos acompanhamentos: Batata frita, arroz, feijão, maionese... Invisíveis. E quando por fim fez uma mímica de cortar a carne, exclama para a mulher e para o garçom:

-- Realmente é bem macia! – e ao colocar o naco de nada na boca, solta: E... De sal também está ótima!

Desde que essa novidade foi lançada no cardápio da antiga Churrascaria Tempero Gaúcho, comentários como esse são tão freqüentes nas mesas quanto a reclamação pela cobrança dos 10 por cento e o couvert artístico do cantor. O famoso Churrasco Invisível, uma iguaria que já fez com que a churrascaria tivesse não só que destinar toda uma parede para pendurar os inúmeros prêmios que ganhou, que vão desde organizações ambientais pelo consumo consciente de carne até o de publicações renomadas do setor empresarial como a revista “Pequenos Pênis, Grandes Negócios”, como também teve de mudar de nome, agora conhecida nacionalmente como Churrascaria Tempero Invisível.

A história de sucesso, recontada sempre nessas publicações empresariais com certos floreios e palavras de grandeza, começou de fato quando o digital influencer Galeguinho das Encomendas fez uma visita surpresa ao restaurante. Galeguinho, doido para meter o famoso Cartão @ (eufemismo para comer de graça em troca de divulgação em seu instagram), chegou acompanhado de seu séquito composto por anões, gagos, homens obesos, mulheres voluptuosas e outros com manias de grandezas e delírios psicóticos considerados “engraçadinhos” por parte de seus milhares de seguidores. Sacando o celular assim que passou da porta, e já filmando um stories dizendo que estava na melhor churrascaria do nordeste, Galeguinho deu uma gravata no pescoço do primeiro garçom e esbravejou mantendo-o o pobre serviçal de refém: Agora quero falar com o gerente!

Já se antecipando a confusão e temendo o prejuízo em troca da divulgação não solicitada, o filho do dono da Churrascaria foi até Galeguinho negociar alguma permuta e a soltura do garçom. O influencer disse que estava com o dedo no gatilho do botão enviar e que dependia dele a glória ou a ruína do negócio: É só você liberar do bom e do melhor para mim e para a equipe aqui, disse apontando seus satélites; argumentando ainda que não só meus milhões de seguidores podiam ver aquilo, como também os seguidores de cada um daqueles pobres diabos que o acompanhavam em farras e postagens pelo nordeste. O gago da trupe de Galeguinho, do nada, começou a imitar uma sirene de ambulância; o gordo sem camisa começou uma dança que segurava a genitália; os anões batiam cabeça e as mulhres, bom, elas apenas sorriam. A situação era tensa.

-- Tá bom, tá bom – gritou o filho do dono, naquele stories que mudou tudo – hoje vocês vão comer a melhor carne de Alagoas!

Laurito Pederneiras, herdeiro da Churrascaria, formado em manutenção de celulares Android, não é o inventor da receita, isso temos que admitir. Após acalmar os ânimos no salão, ele foi até a cozinha e pediu que o churrasqueiro preparasse picanhas, filés e costelas. Porém, o churrasqueiro com salários atrasados, pediu que o chefe o acompanhasse até a câmara fria do estabelecimento. Lá, limpou as facas de corte e as tabuas e em seguida se pôs a trabalhar no nada. Por fim, explicou tudo aos garçons, como deveriam apresentar o prato e como agir. Meia hora depois, Galeguinho ao ver os dezoito espetos vazios em cima da enorme mesa, baixou os óculos escuros e exibindo os olhinhos miúdos de cigana obliqua e de ressaca, brandiu:

-- Que porra é essa, meu patrão?

-- Apresento-lhes, o churrasco invisível. – Disse o churrasqueiro, antecipando-se ao dono da Churrascaria. – É uma carne que somente quem entende de carne assada é capaz de experimentar.

-- Eu sei, meu patrão, tô reclamando só dá quantidade, será que dá pra esse povo todo? – Retrucou Galeguinho, para não ficar por baixo.

A partir daí, com a ajuda do público de pessoas como Galeguinho das Encomendas, o sucesso foi estrondoso e a Churrascaria expandiu seu cardápio, não tinham mais a Picanha Argentina, mas sim a Picanha Invisível Argentina, e o feijão tropeiro, como dizia o cardápio, era rico em nuances e temperos que não existiam. O balé de carnes assadas chamado de rodizio não parava, garçons percorriam o salão de cabo a rabo, dia e noite, voltando com os pratos e copos mais limpos do que se tivessem saído da fábrica.

Agora a churrascaria podia atender não só veganos, vegetarianos e gente paranóica com limpeza e que jamais havia comido fora antes, como também o publico fitness delirava com tão baixas calorias dos pratos ali ofertados. E os preços também eram irresistíveis a todos os bolsos. O negócio era uma febre e como tudo que é sucesso, logo atraiu imitadores e se primeiro a concorrência caiu de pau, logo passou a copiar o modos-operandi da Tempero Invisível. Vários negócios proliferaram com esse tipo de receita, foram criados franquias e slogans do tipo: "Aqui o bife do vazio é de verdade!". Ainda assim, a desconfiança existia e outros empresários, com preguiça de operar o ar e o nada, denunciavam a vigilância sanitária, porém os fiscais não encontravam nada além do brilho nos pratos e da higiene impecável dos banheiros. E quem mais, além dos eternos clientes insatisfeitos podiam apontar o erro, mas estes, com medo de serem taxados de burros ou não-entendedores de carne, logo se calavam ou evitavam a casa. Talvez as crianças, as únicas que podiam de fato apontar o espeto liso e dizer para seus pais que não tinha nada ali, seriam capazes de tão sinceridade, porém estavam todas muito distraídas na brinquedoteca da Churrascaria, pulando e se atirando no chão em camas elásticas e piscinas de bolinha que não existiam, ou mesmo tentando adivinhar a senha wi-fi de mentira.

Durou alguns anos esse tipo de empreendimento e até o presidente Jair Messias Bolsonaro se arvorou para si alguns méritos, como o de ter criado leis que facilitavam esse tipo de comércio e o do emagrecimento da população. Então um dia, mudou o presidente, a economia melhorou, as pessoas voltaram a ter poder de compra e passaram a comer carne de verdade outra vez. 

Fim.


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