(Harley Manifold) |
“Todo dia um malandro e um otário saem de
casa.Quando eles se encontram, saí
negócio”.- Provérbio Chinês -
Tenho, como todo homem são, uma serie de neuras, desconfianças e paranoias por qualquer coisa que exista nesse mundo. Uma delas é a de não confiar em bancos e muito menos em aplicativos. Mas... Enquanto a pandemia do covid-19 não mata metade da população mundial e o Covid-20 ainda não nos fez chegar a completa barbárie e destruição de todo o sistema capitalista, é preciso sair de casa para encarar um caixa eletrônico numa agencia qualquer e pagar boletos.
Qualquer cidade brasileira que tenha programas policiais na hora do almoço como lideres de audiência não inspiram muita confiança. Portanto saio de casa apenas com o essencial nestes tempos. Ou seja, mascara e desodorante no sovaco.
Antes de entrar no banco, igual a todo mundo, vejo a movimentação de longe. De dentro do carro, olho para os quatro cantos se não há ninguém escondido no estacionamento, ou mesmo dentro da agencia. Nada. Tudo calmo e vazio. Perfeito. Mesmo assim entro intuindo uma coisa ruim, um mal estar que vai muito além da obra completa de Dostoievki que carrego em contas. A sensação de que serei pego por um momento até me faz esquecer o limite do cheque especial.
Olho a porta de entrada várias vezes e tento ver pelo janelão alguma movimentação mais estranha na rua. Impaciente, tiro o cabelo da testa, finjo tirar caspa do ombro direito, ajeito a manga do lado esquerdo e coço o peito – alguém mais atento nas câmeras de segurança notaria que esse é um sinal da cruz disfarçado. Faço um pedido a sabe-se lá quem, desejando proteção e que por favor, hoje não...
Mas então eis que acontece! Ouço o barulho de uma motocicleta vindo da avenida. São dois caras. Puta merda, eu penso, me ferrei. São eles. É ele. Fico congelado olhando para uma família ilustrando as vantagens sobre o débito automático. Pelo espelhinho retrovisor colocado acima do caixa eletrônico confirmo meus temores, mas esse cara não só atacava pessoas no Santander? O vulto se aproxima. O meliante vem por trás e parece procurar um lugar em que eu não o note até que se prepare para o seu bote. Pela visão periférica, noto a motocicleta que o trouxe manobrar.
Coloco as duas mãos aonde ele possa ver em cima do teclado numérico e respiro fundo. Ouço um clique. Já sei os seus passos, ele é figurinha carimbada nas agencias bancarias aqui da cidade. Mas só nas do Santander, o que ele faz aqui agora, na Caixa Econômica? Quantos clientes já não caíram em suas mãos, em seu golpe. Só me resta aguardar o inevitável.
Antes que eu esboce qualquer reação, ele saca de sua estranha maleta seu instrumento e... Começa a tocar Evidencias, de Chitãozinho & Xororó. Não há saída. O violinista do banco está na única porta. Baixo a cabeça e amasso a conta de luz. Percebendo meu descontentamento, rapidamente ele emenda Viva La vida, do ColdPlay.
Sua armadilha é perfeita.
Afinal, quem não vai se sentir fragilizado diante de um violinista, um artista sem palco querendo angariar fundos para sobreviver nesse país de insensíveis e que não valoriza o Belo (não o marido da Viviane Araújo!).
Se não dermos dinheiro, é por que somos imunes à arte tão refinada como um violino que toca o tema de Frozen. Estaremos, se não depositarmos dinheiro na sua maletinha aberta, assumindo nossa condição de seres cujos ouvidos já estão estragados pela algaravia do mundo moderno. O pedinte artista é o “sou pai de família/homem de bem” da arte; a chantagem perfeita. Impossível critica-lo sem parecer um esnobe ou um babaca, porém esse cara tocando Marilia Mendonça nesse cavaquinho com vareta, num banco, eleva o nível de forçar barra, é outro patamar como dizia o flamenguista.
O cara que topa fazer esse jogo dele, é um demônio. O homem do violino no banco se não tivesse tocando violino estava concorrendo ao senado ou metendo gol de forma oportunista em algum time de futebol profissional. Se bobear, aprendeu a tocar só pra explorar pessoas em situação de boleto atrasado, como eu.
Querendo manter minha honra de homem culto, mas sem trocados no bolso. Me pego quase que lhe sorrindo e dizendo que não tenho nada. Eis a verdade. Estou liso. Será que ele tem maquineta de cartão?
Não. Digo a mim mesmo, nada disso.
Ainda que tivesse alguma nota nos bolsos, não lhe daria, pois acho seu golpe deveras rasteiro. Um instrumento musical na mão de alguém sem escrúpulos, me faz lembrar das palavras de Fausto (o Silva): “É igual colocar gilete na mão de macaco”. Mas aqui não é um teatro, aqui é o mundo real. O único lugar onde se pode comer uma feijoada e parcelar em três vezes no rotativo. Porra, um alicate de unha de três reais eu consegui dividir, por que não consigo encarar esse doidão?
Tento manter a calma, digito tudo manualmente, zero por zero. Atenção total para não agendar nada para dois mil e trinta. Estranhamente vou mergulhando nas suas melodias e me pego acompanhando o ritmo do Für Elise, de Beethoven e quase peço Bis quando ele toca Não quero dinheiro, do Tim Maia. Mas aí noto o deboche.
Passados vinte minutos de nossa valsa, estou batucando no teclado o tema da vitória do Ayrton Senna.
Sozinho.
Olho para trás e não vejo ninguém, exceto um boneco de papelão pedindo para os clientes baixarem o aplicativo do banco.
Minha pilha de contas atrasadas cansou o pescoço dobrado do violinista. Ou será que ele notou que sou um pobre diabo ocupado, pagante de contas e que provavelmente não lhe daria nada. Igual entrou, ele sumiu noite adentro, escafedendo-se feito uma alma errante, para talvez aterrorizar outra pessoa, nessas tão temidas e famosas saidinhas de banco de uma cidade tão traiçoeira como Maceió.
Sigo no meu papel de otário que não atrasa vencimento cantarolando “já é natal na Leader Magazine”. Quando saio da agencia, percebo que alguém escreveu no para-brisa traseiro do carro, usando a poeira como quadro-negro: “Me lave!”.
Só pode ter sido ele.
Em quantas vezes será que parcelam uma lavagem
completa naquele posto?
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