Sempre digo para os meus alunos – que na verdade não passam de uma
meia dúzia de moscas acima da minha cabeça: Não testem demais a paciência de
seus leitores-ouvintes.
Antes de tudo, ou antes de nada, é necessário falar de duas pessoas
e do que eles fizeram, primeiro é Georges Perec, o escritor francês, que entre
outros quebra-cabeças literários – vamos chama-los assim – ficou famoso por
escrever sobre o que ocorre quando não ocorre nada (é famoso sua tentativa de,
ao sentar por alguns dias num café de Paris, narrar tudo aquilo que ocorria a
frente dos seus olhos: o movimento das nuvens, a placa dos carros, as roupas
das pessoas... “O que ocorre quando não ocorre nada”). E também por suas
listas.
Uma dessas listas Perequianas é uma sobre tudo o que ele lembrava
desde a infância, intitulada “Eu me Lembro”. E a outra é uma catalogação de
tudo o que ele comeu durante um ano, entre sólidos e liquidos.
O segundo personagem convocado aqui é Fu-Manchu. Para quem nunca
ouviu falar, Fu-Manchu é aquele típico vilão japonês que aparece em um meio
mundo de filmes B, tem longos bigodes e leva esse nome quando roteirista não
que pensar muito ao descrever um antagonista asiático. É um desses nomes que
servem para dar rosto a alguém sem rosto, vamos dizer assim. Você leitor, pense
num japonês vilão de filme. Pronto! Chama-se Fu-Manchu.
Um conselho que meu Tio Avellar sempre me dava era: Na hora de
escrever, tenha calma, pois uma hora a prosa aparece. Seria normal e até
corriqueiro ele dizer isso se não fosse analfabeto.
Dia desses, pensei muito nele e no seu analfabetismo crônico quando
me vi sentando numa sala de aula para prestar o vestibular sem nem saber
direito o porque e para que eu me punha a prova naquele teste, então, com medo
de sair de lá preso por me movimentar ou me angustiar demais passei os sessenta
minutos antes da prova iniciar impedido de fazer qualquer coisa que não pensar
ou comer, conforme as regras desse jogo chamado ENEM.
Sessenta minutos completamente preso dentro da minha caveira, como
dizia David Foster Wallace.
Durante aquela hora no exame pensei muito em Georges Perec, ou no
que Perec narraria se ali estivesse confinado sem poder fazer nada exceto se
coçar ou comer uma maçã. Depois de um pequeno ensaio imaginário sobre esse
tema, que infelizmente esqueci, assumi meu papel de turista naquela sala de
aula e decifrei as pinturas rupestres de minha caverna particular.
Coisas e códigos escritos na minha banca de colegial pelos alunos
do Colégio Estadual Ovidio Edgar: O escudo do Clube de Regatas Brasil; um rosto
japonês, com longos bigodes, que apelidei de Doutor Fu-Manchu; dois pênis que
mais pareciam borboletas espetadas; uma tentativa de elaborar algumas letras
japonesas ou componentes do alfabeto japonês, que imagino terem sido obras do mesmo
autor do Fu-Manchu; diversas colas matemáticas e químicas; uma gabarito: 1-B,
2-C, 3-A (que fiquei tentado a copiar na minha prova, julgando ser ali um sinal
divino ou de meu amigo Fu-Manchu)...
Coisas e códigos escritos nas paredes da sala de aula: o nome “Igor”,
escrito em várias caligrafias e com vários tipos de caneta, certamente
derivações do mesmo meliante para burlar as autoridades locais pedagógicas; um
número de telefone repetido também diversas vezes; uma vagina cabeluda
acompanhada da frase: “Essa é da tua mãe”; Um chiclete colado na parede moldado
em forma de lagartixa.
Coisas que pensei durante o Enem: Numa xícara de café com leite; na
minha namorada; em como era benéfico estar em silêncio, sem celular para criar
algo.
Vendo todas aquelas manifestações contra o tédio nas paredes e
bancas, tentei imaginar o que um extraterrestre pensaria ou que impressões poderia
ter de nós algum viajante do futuro ao encontrar aquele pedaço de carteira
cheia de palavrões e genitálias. Pensariam que somos fornicadores empedernidos?
Lembrei de Enrique Vila-Matas, outro Perequiano, que disse que provavelmente os E.Ts só se espantariam com a humanidade ao descobrir que
metade de nós raspa a cara pela manhã enquanto outra metade não.
Até hoje não sei quanto tirei ou se passei em alguma coisa.
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