Da fauna e
flora presente nos shopping centers da vida, descobri que a espécie que mais
gosto é a dos vendedores das lojas de surfwear, afinal, num ambiente elitista e
blasé como são os shoppings, essas crianças crescidas sempre abertas a qualquer
papo, fogem dos típicos muzaks da concorrência e acabam por ser verdadeiras
brisas em meio ao ar refrigerado do capitalismo ordeiro e presente.
Não tenho nada
contra grandes centros de compras modernos, que fique bem claro – apesar de
terem abolido o vaporwave das caixinhas de som e de cobrarem caro pelo
estacionamento – mas dia desses foi preciso mergulhar fundo nos bulevares fakes
para procurar uma sunga de natação nova, já que a minha entrou naquela fase de
transparência que tanto faz se você vai nadar pelado ou com ela. Mas também não
podia ser qualquer sunga, a escolhida teria de se encaixar nos seguintes
quesitos antes de envolver meu corpo:
Que fosse
preta ou azul escuro e não custasse mais de cinquenta reais; que não tivesse
uma estampa parecendo uma externa de um filme do Brian de Palma; que não fosse
muito angulosa ao ponto do meu pênis parecer duas castanhas equilibristas, nem
que fizesse me sentir um stripper aposentado.
(Que os anos
80 foram um grande equívoco todos nós já sabemos desde que o primeiro roqueiro
optou por partidos conservadores ao invés de overdoses como causa mortis, mas
foi espantoso notar que no próximo verão será impossível não parecermos
figurantes de uma novela estrelada por Nuno Leal Maia tamanha a convexidade das
cuecas de praia que vem aí.)
Sem muito
horizonte naquele mar de gente (era domingo a noite) me vi compadecido da nudez
de uns peixinhos na vitrine de pet shop, enquanto meia dúzia de crianças e pais
se derretiam por um beagle a espera da fiança, o que me lembrou da história
contada por Zeca Pagodinho de que todas as vezes que bebia em shoppings acabava
comprando um cachorro de três mil reais por puro dó. Creio que não é por acaso
que as pet-lojas ficam sempre perto da saída.
No reflexo do
aquário notei o loop de uma onda quebrando e o logotipo de uma boutique de
Surf. Nadei, digo, caminhei para lá, já sem folego ou sem esperança, movido
apenas pelos motivos florais e pelo apelo da dita onda sendo repetida em três
TVs tubos.
Um rapaz com
ares de Salsicha do Scooby-doo perguntou se podia me ajudar. Não me olhou dos
pés a cabeça como manda o manual dos vendedores, encarou-me nos olhos e tocou
em meu ombro. Mais do que um cliente notei naquele vendedor a falta de uma tia
ou avó que lhe tomasse conta. Era um legitimo remanescente dessa classe
operária que preza por tipos com voz de menino dentro de um corpo de adulto.
Aquilo me comoveu. Foi como ver um homem da renascença – ou um astronauta,
igual naquelas cenas de Além da Imaginação.
Falei meu
drama por um trapo decente que me cobrisse as partes e ele prontamente sacou de
uma gaveta o que eu tanto buscava. O pano ideal para minhas imperfeições. Cor,
elasticidade, preço, durabilidade. Tudo perfeito não fosse um enorme logo na
parte frontal, quando ele a virou. Mesmo assim provei, incomodado por carregar
um outdoor na virilha. Abri a porta do provador e questionei, sentindo-me um
Marx de tanguinha:
E essa farra
do capitalismo aqui?
Ah, ninguém
liga pra isso… É um detalhe pequeno.
Era mais fácil
minha pele desbotar no cloro da piscina do que aquela sunga. Pensei ainda em
falar que já levo nomes, referências e placas demais na alma para estampar
aquilo no corpo deliberadamente. Voltei ao provador, tirei a peça publicitaria,
me vesti e como desculpa soltei a velha carta dos fracos, a de ir dar mais uma
olhada por aí, porém ele me desarmou só com um gesto. Ao devolver a sunga para
a gaveta parecia um soldado derrotado dobrando uma bandeira na qual só ele
acreditava, murmurando para si mesmo que era uma pena. Foi quando o ouvi dizer,
como se consolasse uma criança preterida no orfanato:
Ah, mas
QuikSilver é QuikSilver…
Ao escutar seu
lamento, foi como se pulasse os cincos segundos de propaganda e um vídeo
rolasse diante de meus olhos exibindo parte das pequenas tragédias daquele
vendedor: O subir e descer de escadas até o estoque; as doze horas diárias
inclusive nos domingos; a tentativa de agradar metade da cidade que jamais
pisará numa prancha de surf; a realidade mesquinha e opressora de vendas,
comissão e pechinchas…
Baixei a vista
para disfarçar o cisco que caíra em meu olho ante o seu tão digno e doloroso
“QuikSilver é QuikSilver”, era uma rara demonstração de fé, de crença num mundo
cada vez mais ágil, oco e incauto. Se ainda há alguma tradição nos Shopping
Centers ela está aqui, vestindo bermudas de tactel, boas e velhas camisetas com
estampa nas costas e um boné de aba reta. Saí da loja mais nu do que entrara.
“QuikSilver é
QuikSilver”, era como um pedido de resgate. Era o “nunca mais, nunca mais,
nunca”. Comprei pipoca, tomei sorvete, tentei achar alguma ficha no chão do
fliperama e meu corvo pessoal roendo-me a alma. “QuikSilver é QuikSilver”.
Voltei lá.
Vai levar a
sunga? Perguntou o vendedor tirando a franja dos olhos.
Não. Eu… – e
percorri com os olhos uma saída que não me envergonhasse tanto – e aquele
chaveiro, ali? – apontei.
É QuikSilver
também, vai levar? É ótimo pra chave do carro, da casa…
Quando
concluímos a compra de seis reais por um chaveiro em forma de chinelo, ele me
levou até a porta e comentei que os manequins de Surf Wear eram os últimos que
ainda sorriam comparado as outras vitrines.
Ih… É mesmo!
Disse o vendedor gargalhando mais que o boneco. É o Giva, o nome dele…
Completou apontando para a gengiva do manequim.
Giva usava uma
camisa da QuikSilver e uma bermuda de tactel cuja estampa era um afresco da
fachada da própria loja. Pensei em fazer como num conto de Borges e me procurar
dentro da estampa da bermuda e talvez ali encontrasse alguma verdade secreta do
mundo ou minha tão sonhada sunga, mas estava lívido, havia ajudado alguém. Até
a voz dentro de mim mudara, dizia que eu era especial e que o fim do expediente
estava previsto para dentro de cinco minutos.
Texto
originalmente publicado em 11 de setembro de 2017 no site da REVISTA DOS
ESCRITORES MUITO ANÔNIMOS (EMA)
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