(Anders Brekhus Nilsen) |
Até hoje lembro – e me encanto – com a
história que você contou de quando era criança e queria tomar sorvete um dia, e
que sua mãe abriu um abacate, encheu de açúcar e disse que aquilo era sorvete. E
você acreditou.
Não que fossem miseráveis e vivessem
passando necessidade, mas sua mãe estava sim na miséria e na pindaíba, só que
emocionalmente, a um ponto de não ter pernas para encarar uma sorveteria. Você
nunca me mostrou fotos do seu pai, também nunca perguntei como ele era, embora
minha curiosidade sempre fora saber o que faz um homem abandonar uma casa com
três mulheres bonitas. Espero que tantos anos depois, você não fique com raiva
ao lembrar da vez em que te disse estar apaixonado por sua irmã e por sua mãe.
Era poesia – uma me lembrava de quando te conheci, a outra me dava esperanças.
Hoje, comecei a ler o Jogo da Amarelinha do Cortázar, você não
vai lembrar – nem de mim você lembra mais – que um dia passando numa imitação
de livraria (nós imitação de casal) você disse que aquele título era engraçado.
E ficou inventando um monte de enredo absurdo para o livro. Ele é sim absurdo,
mas tô no começo, nem sei direito do que se trata, mas agente terminou e até
hoje também não nos entendo... Agora veio um cara aqui comprar uma carteira de
cigarros, “Hollywood...”, “seu troco, obrigado”, pode ser ele o seu pai, branco,
cabelos castanhos, o nariz parecido com o teu. “Ei, por que o senhor não voltou
para a casa, número 78, do Farol?” Quase perguntei e com isso, voltaria com ele
ou só com a resposta dele. Séria um bom motivo não é, para aparecer? Podia,
pois ele já se foi.
Só que... Para que voltar não é? Tem
coisas que é melhor deixar lá, com um lençol furado dentro dos armários do tempo
que guardam tudo, ainda que por baixo de outros lençóis, ainda que sobrevivam
as traças, ainda que nunca mais veja, toque ou sinta algum corpo. Ainda que nunca
mais nada...
Agora veio aqui um homem acompanhado
de uma moça bem nova. Ela comprou um monte de besteira, ele pagou tudo. Até
sorvete. Me chamou de Galeguinho... Eu poderia dizer que achava bonito os dois,
se alguma mulher não estivesse em casa sofrendo por causa desse bigode. Se ela
estiver buscando outros lábios em outros bigodes tudo bem. Eu a entendo, até
porque estou fazendo isso enquanto trabalho, sim, porque a vida acontece nessas
frestas de tempo que são o trabalho, a escola, os hospitais, as esperas. Entendo até sua
mãe que nunca quis mais saber de homens, entendo até você que não os perdoa e
que agora me tem num rol de otários igual seu pai. Entendo até esse cara me
chamar de Galeguinho: A paixão faz isso, muda a cor de tudo, até das pessoas.
O passado também. – Melhor ficcionista
que o Cortázar, só ele. Ou só o seu pai, que conseguiu inventar uma vida nova para
ele longe de você.
Cid Brasil