(Eduardo Salles) |
“É
preciso que o artista atue de forma que a posteridade seja levada a crer que
ele não existiu”. Assim Gustave Flaubert, o homem-pena francês, definiu a profissão
de DJ de loja, essa figura anônima por trás da trilha sonora que embala compras,
dividas e furtos.
Dono de uma das profissões mais antigas do
mundo, o DJ de loja resiste bravamente atirando suas pedras sonoras nas
vidraças de nossas rotinas e das agencias de publicidade moderninhas que tentam
roubar seu lugar vendendo esse serviço num case gourmet de bem-estar social &
experiência para empresários desinformados e insensíveis.
Entre as gôndolas e o alheamento do público, o
DJ de loja trabalha de mãos dadas com o anonimato tal qual a máxima
Flaubertiana; ou tal qual um Banksy das farinhas de roscas ou um Thomas Pynchon
da seção de cosméticos ou ao menos igual ao pichador urbano que espalha pela
cidade as preferências sexuais do deputado Alberto Sexta-Feira – outro exemplar
artista da província.
A figura que é paga para elaborar a trilha
sonora do local com a maior concentração de donas de casa por metro quadrado de
Maceió deu, na tarde desta terça, uma demonstração de ousadia e inteligência no
pout-pourri escolhido; uma inteligência que se não é guiada pela loucura ao
menos é movida a INSS e seguro desemprego. Apesar do alheamento e da aparente
caretice de seu público no supermercado, ele conseguiu, mais uma vez, imprimir
seu CPF em nossas mentes movidas a crédito e débito. Foi na fila, precedido por
três simpáticas sósias de Marechal Deodoro da Fonseca, que escutei explodir
pelas caixas de som um reggae que dizia assim:
“Você
pode fumar baseado/ baseado em que você pode fazer quase tudo/ Contanto que
você possua/ mas não seja possuído”
Mais assustado do que surpreso por ainda
existir o conjunto intitulado Cidade
Negra foi ouvir essa música passando despercebida pelos ouvidos do habitual
público presente.
“Porque o
mal nunca entrou pela boca do homem/ Porque o mal é o que sai da boca do homem”
Mocinhas na sessão de material escolar,
mulheres adquirindo produtos de beleza ou evangélicos buscando bíblias que
combinassem com seus conjuntos sequer esboçaram um mísero risinho chocho ou um
tímido: “ave cristo!” enquanto seguia o som:
“Você
pode beber baseado/ baseado em que você pode beber quase tudo/ Contanto que
deixe um pouquinho/ um pouquinho pro santo”
Sequer notei gerentes ou seguranças correrem até
as os fundos da loja para impedirem aquele momento de contravenção do selecionador
musical, que certamente podia ser um estagiário ou o moço do almoxarifado;
afinal, o artista é também um anarquista de primeira, um detonador dos pilares
do capitalismo.
Claro que podia ser somente uma genial molecagem
aquilo ou o mero acaso do selecionador randômico do computador se logo em
seguida não começasse a tocar É Proibido
Proibir na voz de Caetano Veloso, como confirmação de que ali, por trás da
trilha sonora da Casa Vieira, estava uma inteligência rara e humana e não a
ingenuidade do Windows Media Player.
Ao fim dos seis minutos redentores havia
lágrimas nos meus olhos e pensei que mais injusto do que maçãs a 11 reais o
quilo, ou mais injusto do que desvirtuar citações de monstros da literatura,
era somente o carinho com que as velhas maconheiras a minha frente seguravam os
pacotes de pão de forma e os potinhos de nutella que certamente iriam por fim
as suas laricas de fim de tarde.
Cid Brasil
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