(Lourenço Mutarelli) |
Tenho um tio que certa vez, buscando definir a timidez de sua nova
esposa, disse que ela às vezes tinha medo até de se mexer por temer atrapalhar
as moscas acima da cabeça.
Mentira, ele nunca disse algo assim sobre minha tia. Talvez eu
tenha escrito isso apenas para espantar as moscas dessa página ou para me
vingar de meu tio, que consegue ser mais literário que eu. Ou pelo menos consegue
dizer coisas mais interessantes que eu. Falando em moscas e nesse tio, lembro
que, por exemplo, ele costuma dizer que elas são as únicas coisas que restam
quando não resta nada. Acima de minha cabeça pelo menos há uma reunião delas.
Esse tio das moscas mora no interior do Rio Grande do Sul – ademais
um lugar de muitas moscas – e é capaz de frases tão literárias que muitas vezes
penso que é ele o escritor da família. Hilário é também o seu relato sobre o
dia em que pensou estar com uma grave enfermidade por notar que suas unhas
estavam amareladas demais nas pontas.
Um dia, conta, explicou isso ao filho, que prontamente foi ao
google conferir o que poderia significar aquele sintoma das unhas amarelas. Rio alto
sempre que me lembro da expressão de meu tio ao ouvir de seu filho que aquilo
poderia ser um claro indicio de um iminente derrame pleural (uma hemorragia em
torno dos pulmões). Porém meu primo só esqueceu de avisar que essa doença é
algo que pode ocorrer somente em quem fuma demais, e meu tio jamais tocou num cigarro.
Temendo que o menor movimento lhe ceifasse a vida a partir daquele diagnostico
vindo do respeitado computador de sua casa, meu tio ficou paralisado no sofá a
espera da esposa. Conta que na saída rumo a emergência deu uma boa olhada nos
móveis e nas paredes, num gesto que poderia ser identificado como o de
despedida do lar, mas que só lhe trouxe desanimo e irritação devido a poeira
dos cômodos.
No hospital o médico plantonista não soube explicar o que seria aquilo
nas unhas e aconselhou meu tio a procurar um dermatologista. Como moravam no
interior do interior do rio grande, tiveram de aguardar a visita mensal do dermatologista
na cidadezinha.
Foram os piores trinta dias de meu tio, que não parava de dizer para si mesmo
que estava a beira do precipício. Prontamente ditou um testamento para meu
primo, onde deixava todas as suas poses (trinta cabras, o velho passat e as
roupas do corpo) para serem divididos entre os pobres, ou seja, entre eles mesmos.
Depois, disse que tentou escrever cartas de despedidas para seus amigos mais
próximos – contou que escreveu a primeira muito demoradamente, temendo que o
menor movimento lhe ceifasse a vida – sentindo uma imensa alegria ao terminar a
carta, começou logo a rabiscar as outras missivas, foi só na quinta carta, ele
conta, que lembrou ser analfabeto.
Nesse ponto indaguei como diabos ele podia ter escrito cartas sem
saber escrever, e meu tio respondia que no leito de morte é comum os amargurados
inventarem seus próprios milagres.
Vendo-o vivo e debochando da minha cara, a essa altura lhe
perguntei o que disse o dermatologista quando enfim chegou o dia da consulta.
Ele pediu que eu cortasse as unhas ali mesmo, disse o meu tio, e
logo depois as cheirou e me mandou fazer o mesmo. E? Eram por causa das mexericas,
disse, nessa época eu tinha o hábito de descascar as laranjas com os dedos...
Cid Brasil
Encantada..
ResponderExcluirDebora, obrigado menina!
ExcluirApareça mais vezes também.
Beijos!