Mamãe,
meu pai, meu irmão e eu nunca andamos todos juntos naquele carro. O carro acompanhou
muitas brigas e tragédias, mas apenas em duetos ou tercetos. No fim acabei
ficando com ele. Acredito que daria uma boa crônica familiar o passeio desse automóvel
por nossa casa, até porque a vida de papai seria um relato financeiro, talvez
esportivo – frio e sem poesia –; mamãe seria o equivalente, com sua vida
espartana, a um romance caudaloso, longo demais... E meu irmão daria um conto
triste. Belo e triste. Um conto que deixa mais desamparo do que soluções ao
final. A única história que passeia por todos nós, de alguma forma, talvez seja
mesmo a do carro.
Essa é
uma história confusa igual ao funcionamento de um motor, confusa
igual as engrenagens de uma família, confusa igual aos gêneros literários.
Igual a tudo na vida, acho.
Após o
acidente que vitimou meu irmão, a ideia inicial era vender a carcaça o mais
rápido possível, mas meu pai se negou a vender o Kadet 2.0 para um ferro velho.
Meu pai acreditava que pegaria muito mais dinheiro se consertasse a lataria e o
motor e o pusesse numa concessionária para ser vendido depois. Seu
luto foi assim, estranho.
A
crônica sobre o carro começa dessa forma: Sob uma crise financeira e uma
ditadura patriarcal. Por esses motivos, tivemos, minha mãe e eu, que aguentar o
carro onde meu irmão morreu de volta na nossa casa, no quintal, somente um mês
após o ocorrido.
Tomada
essa decisão o casamento de meus pais foi perdendo combustível e até hoje não
sei se eles brigavam mais pelo carro estar ali do que pela morte do meu irmão.
Acredito que meu pai pensava ouvir reclames sobre não ter se livrado logo do
carro enquanto minha pensava falar sobre o erro de dar um carro a um rapaz de
dezessete anos sem habilitação. O negócio de vender o veículo naufragava assim
que as pessoas sabiam que um jovem morrera ali, vítima de uma batida. O por quê meu
pai contava sobre o acidente, eu realmente não sei; quem sabe por culpa ou por
não concordar com os valores oferecidos.
No dia
em que rompeu com minha mãe o “eu te amo e não te abandonarei” que ele
disse para mim foi assim:“Deixo o carro para vocês, se o venderem, me avisem e
repartimos o dinheiro”. Nessa época, com acidente e
separação, eu sempre tinha um sonho recorrente: O de nunca
conseguir frear o carro, fosse a duzentos ou a vinte por hora. Esses sonhos só
acabaram justamente quando aprendi a dirigir. Ou melhor, quando sentei no banco
em que meu irmão morrera.
Ao lado da minha mãe, comecei com trajetos curtos, até a padaria, a locadora de filmes, depois fui me acostumando
a pilotar sozinho e ia cada vez mais longe, seguia dirigindo a esmo, em muitas oportunidades pegava meu pai e saímos por aí, no mais absoluto silêncio. Acho que é aqui que começa a crônica do automóvel e que
termina o conto do meu irmão, comigo dirigindo a toa seu antigo carro, ao lado do meu pai, enquanto ouvia
música e chorava pensando nele. Tenho que escrever esse conto um dia, mas ele
acabará assim: Com meu pai dormindo no banco do carro, ou fingindo dormir, ou fingindo não me ver chorar.
Curiosamente
quando finalmente julguei que o carro ficaria comigo para sempre, apareceu um
comprador. Ainda pensei em confessar ao homem que meu irmão havia morrido nele;
mas como precisávamos mais de dinheiro do que qualquer outra coisa, fiquei
quieto. Na verdade é aqui que acaba a crônica do carro, comigo passando a chave
para esse homem.
Cid
Brasil