(Giorgio de Chirico) |
Muita gente, ou apenas duas ou três, perguntam se essas pessoas de
quem escrevo existem. Ou se tal situação foi real. A realidade é essa janela, e
ela mostra agora um vendedor de frutas que sobe a rua e ao seu lado vai um moço
com um violão preso as costas. Sempre que vejo alguém com um violão assim, recordo
de uma tia minha lá do Piauí que gosta de apontar esses músicos do acaso e
dizer: Lá vai mais um indo brincar de Chico Buarque! Quando eu fazia teatro, a
cada nova peça que estreava, fazia questão de telefonar para Teresina e contar tudo
sobre o espetáculo para minha Tia – hoje vejo o quão ridículo era informar Tia
Filó de minhas aventuras teatrais, ou mesmo avisar do horário, do local ou até
da função de meus colegas de cena, estando ela quilômetros e quilômetros de
distância – só para ouvir: Hum, então você continua brincando de ser Francisco
Cuoco, não é rapaz? Ou: Ótimo, agora temos mesmo um Tarcísio Meira na família;
era só o que faltava acontecer para minha cunhada...
O mau humor de minha família paterna sempre me cativou muito. Assim
que ela atendia ao telefone, eu amava perguntar o que ela fazia naquele momento
só para ouvir absurdos do tipo:
Estou esquentando uma água para por no ouvido do seu Tio...
Ou
Estava indo riscar uma vela para Satanás... (sua gíria para ir
fumar).
O curioso é que quando parei de fazer teatro e de bancar o
louco-da-casinha (palavras dela), nossa comunicação se encerrou. Nossas
conversas não resistiram a banalidade ou a perguntas sobre familiares perdidos
pelo Brasil ou sobre sua saúde, melhor que a minha, por sinal. Acho que no
fundo Tia Filó sonhava em me ver nas telenovelas; queria apontar para a TV e
dizer para as velhas do bairro: Vocês viram o meu sobrinho ontem? O novo
Fagundes? Não esqueço nunca sua fala na última conversa que tivemos, sobre no
fundo ser correto que eu brincasse de ser artista; afinal, disse ela, não há
artistas, futebolistas, bichas-loucas ou criminosos no braço de nossa família.
Sem esses tipos, ela disse, seria insuportável um jantar de natal. E logo
depois, ouvi um conselho que me acompanha até hoje. Invente algo para você, meu
sobrinho, brinque de outra coisa...
Adoraria telefonar agora para Tia Filó e ouvir suas piadas de velha
ranzinza, suas esculhambações contra as noras ou contra deus e o diabo na terra
do sol lá do Piauí. Talvez, ao escutar que agora tenho brincado de escrever,
ela até me recomendasse fumar meus contos recentes. Escreve-los, como aquele
personagem de Thomas de Quincey, em papeis seda e depois recheá-los com tabaco
e tragar linha por linha. Ouvi-la dizer que no fundo o importante era brincar. Ou
criar, como diz o escritor inglês, pois se algo foi criado, escrito, logo, essas
coisas existem. Tia Filó, assim como o Piauí ou a realidade, não existem. Só o
que há é esse homem anunciando laranja, manga e maracujá a cinco reais.
Cid Brasil
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