(James Ensor) |
Como
todos sabem: Um vagabundo leva sempre a outro vagabundo. E assim por diante,
desde que o mundo é mundo e as praças são praças. Há três meses sou obrigado a
vestir um shortinho colorido pela manhã e sair a cata de sol para alimentar
minha pele carente de Vitamina D. Quatro vezes por semana faço o mesmo trajeto,
me deparo com os mesmos cães sarnentos, levo os mesmos tropeções nas mesmas
calçadas e bato um papo com Natanael, um senhor de cinqüenta anos, morador de
rua que vive na Praça Arnon de Mello, no bairro do Pinheiro. Embora muito
raramente responda a perguntas sobre seu passado, certa vez disse que caiu na mendicância
devido a uma grande decepção na vida. E ele sempre diz que nem por todo o dinheiro do
mundo contará qual foi a tragédia que o desiludiu. Permanece fiel ao segredo.
Até mendigos, penso, tem que ter princípios. Natanael possui vários.
Dispõe
também de uma série de tatuagens estranhas pelo corpo, as mais curiosas são as
de um esqueleto desenhado na perna esquerda e a cabeça de um tigre, que parece
sorrir ou talvez chorar, riscada no antebraço. Desenhos que podem ter sido
feitos num presídio por algum tatuador com Parkinson. Creio ter ganhado a sua
confiança no dia em que vigiei seus andrajos do ataque de um cachorro. Nessa
manhã, munido do cabo de uma panela, afugentei o cão várias vezes até que
Natanael, vindo de alguma ronda pelo bairro, apareceu e me ajudou a proteger
seus pertences. Era sábado, dia que poucos circulavam pela praça. O mendigo vasculhou
a sacola e estendeu-me um pão envelhecido que neguei de forma categórica, ao
que ele retrucou: Ainda bem, pois se você aceitasse o pão de um mendigo nunca
mais aceitaria um centavo seu.
O doce
vagabundo, que parece se valer de escolas de barbeiro para cortar o cabelo (seu
último penteado é uma série de listrinhas descoloridas), trava com o busto de Arnon de Mello uma luta desigual: De um lado, o busto, que conta com a
eternidade dos mármores e a SMCCU – Secretária de Convívio Urbano. Do outro, o
vagabundo, que nem da ajuda das pombas dispõe. Devido a isso, Natanael trata de
espalhar sujeira na base e nos ombros de Arnon de Mello. Com tanta pirraça contra o busto, me pergunto se Natanael não terá sido
funcionário das Organizações Arnon de Mello no passado.
Está
manhã, encontrei Natanael fumando e dando voltas ao redor de Arnon.
Perguntei como ia. Não vou mal, disse Natanael. Porém admitiu estar intrigado com algo
que assistira num documentário. Foi na TV da padaria. Lugar onde faz suas
refeições quando a sorte ajuda. O documentário falava de um mendigo de São
Francisco, nos Estados Unidos, que hoje batiza a Praça onde morou durante
trinta anos. O maluco morreu congelado, disse, e daí todos na cidade fizeram um abaixo-assinado
pedindo que a prefeitura lhe desse uma estátua. A estátua que fizeram, prosseguiu,
fica com a mão estendida e as pessoas botam algumas moedas na sua mão, uns o
roubam, outros fazem pedidos... O mendigo, de repente, virou santo... É uma
estátua, rapaz, não pode gastar, nem ir comprar o santo pão... Olha só que tremenda
maldade é a bondade de alguns, disse Natanael. Logo depois me pediu alguns
trocados. Falei que ficaria lhe devendo. Ok, sem problemas, respondeu, amanhã
você me dá.
Cid
Brasil
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