(Burk Uzzle) |
O pior é que o traficante de drogas também é um
homem sozinho. Ao menos os traficantes de periferia, que são os únicos que
conheço. Sabe como é, ele diz, a mercadoria é pouca, barata, daí não dá para
fazer graça com ninguém. Misael vende apenas crack; cocaína, quando tem, eu
uso. O que resta – quando resta – trata de misturar com meia dúzia de
comprimidos para dor de cabeça, dá para render e fazer um troco. Misael está
jantando enquanto me diz essas coisas, segura o garfo e a faca como se fosse
brigar com alguém e mastiga a carne como se ela fosse a sua própria língua.
Comento isso da carne e ele diz que é porque ela está quente, muito quente. E
sorri mostrando seu elenco bucal desfalcado. E ri mais ainda quando comento que
o que deve dar moleza na cocaína que as pessoas do bairro usam é a maisena, o
giz, a cal ou a farinha de trigo que outros, antes dele, devem botar, em menor
quantidade, na droga junto com mais dorflex.
Tão frágil quanto seu sorriso só seus conselhos
sobre saúde: “Pó é maravilhoso, se fosse ruim ninguém usava essa porra, mas não
caia nessa!” E também seu cuidado em colocar adoçante no cafezinho me parece
exagerado, muito exagerado. Ou suspeito, já que ele embolsa vários envelopes.
Vai ver acabou o dorflex, penso antes de adverti-lo que sou o maior careta que
conheço.
Quando conheci Misael ele já era um garçom de
índole duvidosa. Trabalhou por muito tempo no restaurante que meu pai tinha em
São Miguel dos Campos, nasceu garçom e resolveu, sabe-se lá porque (embora eu
imagine bem o porquê) virar traficante aos 42 anos, quando experimentou crack
pela primeira vez; antes, só tinha usado maconha para trabalhar. Quando
empunhava bandejas, chegava sóbrio e aos poucos ia se embebedando no correr das
horas, disso eu me recordo. Hoje, acho um milagre que meu pai o tenha mantido
por tanto tempo no emprego. Mas talvez conservar aquele pobre diabo por doze
anos e ainda lhe dar uma gorda rescisão seja uma das poucas virtudes de meu pai
em vida, das qualidades de Misael, a mais aparente é a de não andar armado e a
de só vender à vista, para evitar desavenças.
Não há ninguém nas outras mesas. Misael
pergunta do que eu gosto. Como assim? Devolvo. Vicio, você tem algum? Ele
completa. Depois de muito pensar digo que gosto de livros. Gosto de ler
romances... E fora a cocaína, Misael, do que você gosta? De dorflex, ele diz. E
dessa carne também.
Cid Brasil
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