(Michael Sowa) |
Elias, o entregador de jornal que acaba de chegar nessa madrugada,
é na verdade o inventor da própria madrugada. Acho que foi Poe ou Wilde ou
Marguerite Duras – talvez tenha sido Georges Perec – que disse preferir as
madrugadas, pois assim não precisava diferenciar espíritos errantes de pessoas
reais. Que outro instante das vinte e quatro, nessa cidade horrendamente
quente, Elias poderia pedalar sua bicicleta com calma e fluidez, quase como se
flutuasse, sem chamar a atenção, como faz agora. É quase, quase, como se sua
bicicleta, ao invés de rodas, tivesse assas e hélices. Confeccionada por algum
professor Pardal.
Fazia tempo que eu não invejava ninguém. Ultimamente, tenho evitado
profundamente o esnobismo, não só em meus textos (vide a citação sobre
fantasmas atribuída a outros, embora ela seja minha) e nas roupas que visto
(vide minha bermuda furada), mas também em tudo que faço. Quero que me percebam
cada vez menos. Que me convoquem cada vez menos. Que me peçam cada vez menos a
opinião – na verdade, nunca pediram e estou bem assim. Falar de si, que não num
diário, sempre soa muito esnobe, sempre. Temo parecer com esses jovens escribas,
imitadores de Clarice Lispector, cujo único dom é fazer com que se tenha vontade
de ler a Clarice original imediatamente.
Sei que o entregador de jornal se chama Elias porque o porteiro
falou seu nome a pouco. Perguntou: Cadê você, Elias? E Elias respondeu que a
gráfica agora fica em João Pessoa. Por isso a demora. Coisa estranha, pensei,
em João Pessoa? Mal conversaram e Elias montou no seu avião que parece uma
bicicleta e se foi. Sumiu na esquina dos meus olhos, que sem querer virar o
rosto, com medo de espanta-lo, ou de perceber que Elias era mesmo um fantasma,
continuei a olhar para baixo. Entendi, aí sim, o porquê de João Pessoa tê-lo
atrasado tanto: É que ele veio de lá voando. Tenho que descer para pegar o
jornal unicamente para confirmar a data de hoje, que já amanhã. Duvido que nas folhas
trazidas por Elias, além de furtos, mortes e blefes, se noticie que as
bicicletas ou os entregadores de jornal andam flutuando por aí.
Agora olho para cima e num truque de transição literária aprendido num
livro de Enrique Vila-Matas, que ouviu o escritor francês Jean Echenoz dizer
que quando queria ir de um ponto ao outro nos seus livros, sem parecer um
açougueiro, punha sempre o personagem olhando para o céu e este, ao ver um pássaro,
seguia com a narração “pois assim podia ir aonde quisesse”, e assim pego carona
na nuvem igual a uma tartaruga que vejo e vou até minha prateleira e leio o dia
em que Maria Rosa – esposa de Campos Lara, os dois, personagens de O Feijão e o
sonho, de Orígenes Lessa –, “jogando na cara do marido, com a erudição que as
palestras literárias ouvidas ao acaso da miséria do lar, lhe haviam trazido”,
disse que poesia não enchia barriga, que não valia nada, pois se até Camões
havia pedido esmola, de que adiantava tanto delírio? Para que tanto desperdício
de inteligência? E sem nos decepcionar, Campos Lara, responde:
-- Sabe-se que Camões pediu esmola, mas você sabe quem deu esmola a
Camões, Maria?
Sabe-se que os entregadores de jornal não voam, mas será que eles
não são mais importantes que as manchetes que trazem? Desde Gutemberg, acredito
que sim.
Cid Brasil
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