(Ryan Gander) |
Ando
muito interessado na impostura, na farsa, muito mais que na esperança para o
ano vindouro, principalmente depois do que me ocorreu ontem, quando finalmente
resolvi testar a cafeteira que ganhei no amigo secreto e ela me fez a última
vergonha do ano perante as visitas e a namorada. Um ano negro e frio me aguarda,
pensei. Um ano que será igual a essa água preta caindo no carpete. Preciso de
mudanças, pensei. E como resolução nova,
na manhã do último dia do ano, botei minha melhor roupa e fui até a loja
trocar a cafeteira, não sem antes pegar a nota fiscal com meu amigo secreto e
ter o desprazer de descobrir que ela custou, na promoção, vinte reais.
Enquanto
aguardava ser atendido no setor de trocas onde todos carregavam sua falta de
sorte, um ventilador indeciso dizia não para os presentes. Tentei me apegar a bíblia
dos azarados para não chorar: O manual do consumidor. Outra imagem forte é a
daquele livrinho degolado por uma cordinha, também balançando para lá e pra cá.
Na mais bela prosa burocrática do manual, acabei me distraindo e lá descobri que
eles não trocavam os produtos se eles falhassem devido a quedas, incêndios, inundações,
maremotos e ataques de animais domésticos ou selvagens. E também não trocavam
os produtos comprados na promoção. Ou seja: Estava mais que ciente da futura
derrota.
No meio
da instigante leitura e de outras metáforas avariadas, ouço o companheiro ao
meu lado (carregando um criado mudo destroçado, provavelmente vitima de um
ataque de um puma ou da fúria de sua esposa devido ao mau gosto da escolha) reclamar
com o filho no celular que ele dormira demais e perdera a hora de ir até a
lotérica apostar na mega-sena. O homem gritava: Tem certeza, Fabinho, que as
lotéricas fecham de uma hora? Hoje? Tá, tá bom... E logo em seguida o homem pôs
Fabinho no bolso da camisa e buscou confirmar com uma senhora ao lado a
veracidade da informação. A velha, segurando a caixa contendo uma piscina de
plástico, disse que sim. Porra, mais um ano na merda! Esbravejou o homem.
Meu
número era o sessenta e quatro. O ano da ditadura. O setor de trocas estava
lotado e eles ainda estavam na semana de arte moderna. Tradução: Estavam na
senha vinte e dois. Uma criança começou a abrir o berreiro. Imaginei que a mãe
o quisesse trocar. Como não tinha nenhum livro, nada para ler exceto o manual do
consumidor e o calor estava insuportável, notei que Jesus via tudo aquilo enquanto
devorava um pingo d’ouro. Tive essa certeza porque a minha frente um garoto
gordinho segurava um pacote de salgadinho vazio e lambia os dedos. No seu boné
estava mesmo escrito: Jesus. Quase chorei de angústia, mas fechei os olhos e
fiz como fazia no teatro. Improvisei. Fugi do script de homem medíocre. De que
modo? Dei uma de louco. Cutuquei o homem ao meu lado, o que queria ser
milionário e citando Kafka, lhe disse: O senhor sabia que é nos escritórios
onde a preguiça é melhor disfarçada? E me levantei. Na saída, encontrei um
mendigo e entreguei para ele a cafeteira morta, o cupom fiscal e a senha.
Expliquei a ele a situação. Ele teria de desempenhar o meu papel no último dia
do ano. Se conseguisse, ganharia uma cafeteira. Se não conseguisse, poderia repassar
o objeto para frente. Fiquei um minuto em pé, no seu posto de mendicância.
Ninguém me deu um centavo durante minha representação. Pela primeira vez no
dia, me senti leve.
Cid
Brasil