segunda-feira, 29 de abril de 2013

SÓ OS BEIJOS NÃO MUDAM



Cena "O Desprezo" (Jean Luc-Goddard)




Eu não sabia nada de você, e assim você preferia; não sabia que iria te conhecer naquela sexta de olhares infantis e que assinaríamos meu primeiro beijo roubado; e que você voltaria, retornaria e reapareceria durante nossa adolescência. E sempre apressada. Eu não sabia como se vivia uma segunda-feira plena ou como se atendia uma ligação sonhada por semanas, a única sua; nem como seria você não aparecer. E não sabia que hidratante corporal tinha sabor.


Dias, dias, dias depois eu não sabia que doía ouvir o silêncio do seu portão junto com um: “Não me procure mais...” Assim de graça, de brinde, total free, sem devolução ou maiores explicações. Eu não sabia que isso podia destruir uma segunda-feira plena e as seguintes e que não te procurar contaminaria os outros dias. Ou o mais duro, que se sobrevivia mesmo assim. E segui.


Eu não sabia, que mesmo assim se aprendia, pouco, mas aprendi: Que não cozinhava nada, que nadava bem, que tinha boa memória e que nunca esqueci o seu número; assim como nunca esqueci onde guardei a sua única foto que vi e tive.


Passaram-se anos em dias. Isso também não sabia que era possível. Assim como soube que promessa caducava e que orgulho velho fazia mal para o estomago. Então, você voltou e isso, nem você sabia: Que precisava muito de mim. Você disse que não disse nunca, nunca, nunca o “não me procure mais...” por trás daquelas grades e não entendeu quando falei que eu ainda estava preso naquele portão. Ou fingiu.


E continuamos não sabendo. Ou pelo menos eu, que ouvi suas novidades cansadas, seus dois casamentos passados e suas fugas. Dessa vez eu também menti, ao dizer que entendia como casamento é difícil. Afinal, o que podia fazer? Você tinha voltado. E mais uma vez aprendi que não sabia fugir com o carro estacionado; falar de tudo rindo do nada; que pessoas mudavam, evoluíam e cresciam e só os beijos permaneciam iguais; que sempre fui um amigo colorido e borrado; e foi ótimo não saber que faltaria energia naquele quarto do terceiro andar. E você ouvia, ouvia, ouvia e ouvia até demais eu acho, tanto que acreditou naquilo que disse sobre quem fotografa demais uma viagem é porque não aproveitou nada.


Mas uma coisa eu sei e sabia: Que eu não podia consertar seus erros abandonados, como você tanto desejava. E você não me ouviu dizer, que deixa-los assim era burrice, pois eles voltariam. Aquilo que você me propôs era maior do que eu e para continuar sobrevivendo, dessa vez fui eu quem te disse: “Não me procure mais...”.

Cid Brasil

A CRÔNICA ENGARRAFADA


César Ancelle-Hansen




A mulher do lado já é minha primeira leitora. Eu ficaria mais lisonjeado se essa crônica já estivesse pronta – Até a entendo – e a perdoo; eu também espiaria se o meu vizinho estivesse escrevendo ou lendo algo nessa sala de recepção, que é um lugar anti-tudo e pró-tédio, essa e qualquer outra. Agora esse texto tem de sair: É um belo café, está vazio e mal iluminado. Um local fértil para o nascimento do grande texto, para os maiores delírios vanguardistas e os incríveis arroubos poéticos (aqueles que só a minha pretensão juvenil julga que sou capaz). Só que percebo algo estranho no ar, me sinto... Observado! Observado pelas moças que aqui trabalham, e imagino o que será que elas pensam desse que vos escreve? Será que esses olhares desconfiados em minha direção, são por me julgarem um assaltante que anota seus horários, entradas e saídas? Ou creem que sou algum fiscal dedo-duro? Penso tudo isso ainda mais agora, que sentou um cidadão por nome de segurança no balcão a minha frente. É uma cidade inimiga do cronista e da imaginação... E eu não quero falar mais uma vez mal dessa cidade, mas ela me provoca, insiste, e insisto eu daqui. Estanco e pago os dois cafés com leite (frios) que pedi e invento uma ligação para uma amiga, que ao me ler agora ficará com raiva por ser personagem e desculpa para minha fuga.


***


Volto ao trabalho. E percebendo uma brecha, recomeço essas linhas – que torço para não virar a insossa crônica coxinha, ou mesmo a crônica punheta nossa de cada blog. Ao que, um cliente que me vê rabiscar, pergunta se estou escrevendo uma carta de amor, respondo que todo o ato de se escrever numa folha sempre é uma carta de amor: Ainda mais hoje onde tudo é inimigo do infeliz que escreve. O moço ainda quer saber para quem escrevo; invento que é para uma moça de nome Jasmim, com sardas no rosto e perdida num supermercado dentro de meu último sonho. Ele sorri e me deseja boa sorte. É uma maldição continuar essa carta/conto/crônica/masturbação literária, que nem sai mais o que está virando e que só irá servir para que eu me envergonhe no futuro.


***


Em casa, minha mãe me oferta chocolates. E uma paz tremenda me dá, ao recebê-los de suas mãos deixo cair um pedaço no chão, e aquele desgesto reflete o meu dia: Um derrubar sucessivo de gestos, sorrisos e inspirações... Foi assim na conversa com meu porteiro pela manhã, no encontro que desmarquei com um amigo, no telefonema que não fiz, naquele “largo as nove” da moça da loja que eu não respondi, nos parabéns que não dei, na carona que deixei de ofertar e na frase que eu iria colocar aqui como último exemplo... Não resisto, e numa tentativa de desfazer os nãos do dia, recolho do chão o pedaço de chocolate e como, não sem antes soltar a frase mais inspirada do dia: “Não tem problema mãe, só pisa gente conhecida por aqui mesmo”. Ela não sorri (o que me parece obvio) - e nem isso fui capaz. E fecho o caderninho vermelho.


***


Agora, volto a esse ou volto a mim. E nessa madrugada que me invade, escrevo no computador, nesse ser mais sem lirismo do que eu, ele, que me insiste em corrigir com seus traços vermelhos e verdes. Espero que ele falhe, assim como eu. Escuto agora um farfalhar de garrafas. É um homem que corta a madrugada e o meu parco devaneio, vejo de minha janela carregando dois sacos nas costas, cheios de tilintar, cheios de garrafas e cheios de silêncio como eu e esta noite que ele rasga, não faço nada, permito que ele me leve todas as garrafas, que seja. Ele olha para trás, e não me vê que eu o vejo e o descrevo; assim como ele, me permito essa hora roubar também, e roubo de alguém ou de tantos: A imagem do naufrago escrevente de cartas depositadas em garrafas. E me aposso de uma das garrafas do homem. Apenas uma, onde depositarei essa crônica que espero que alguém a resgate, contendo meu pedido de perdão – Pois fracassei.

Cid Brasil

domingo, 28 de abril de 2013

DOMINGO É SENTIMENTO


Orchestra (E.Hopper)


É domingo. 

E domingo é café com leite requentado ao meio dia. Domingo é o único dia com cheiro e gosto. Domingo tem personalidade. Domingo não é um dia na semana, é uma entidade, domingo tem metafisica. O domingo se apossa da gente, ele nos invade, com sua luz própria de eterna cinco horas... De um domingo. Despertamos nele com ressaca. Domingo é alma que se arrasta. Nesse dia viramos cabides dessa melancolia. Muita gente finge não sentir que hoje é domingo, de que jeito? Uns inventam praia, futebol, cerveja e churrasco, eles fingem, mas sabem, mas sentem. Assim como outros que respiram o domingo no ar gelado de salas de cinema ou shopping centers abarrotados. E tem aqueles que não existem no domingo, fingindo indiferença ou tédio e esses sabem muito bem, olhando o calendário e contando as horas que é domingo.

Domingo é dia de ver gente zonza, cambaleante, perdida dentro de carros, ônibus e metros, e também dentro de si, dentro do domingo adentro. Tem os que trabalham, mas esses também não escapam, seja pela demasia ou escassez, de animo ou de clientes, e escorrem devagar junto com os outros, junto todos. Cada um sente a melancolia em forma de dia como pode: Para o moleque é sinal de escola amanhã; pro pai separado é dia de visita e possível reconciliação; pra mãe solteira é de espera ou volta ao lar; pro novo casal de ontem é “agente se fala, se liga ou se esquece”. É jazz baixinho. Domingo é todo jazz. Domingo é uma eterna reprise de sensações. Seja da moça que lamenta os erros do sábado, da semana ou da vida inteira; ou do rapaz que bebe desesperadamente achando que está afogando toda a tristeza que o sétimo dia traz; ou do senhor que caminha como que tentando retroceder a esteira rolante que foi sua vida até aqui, até esse domingo. Sentimento: De roupa amassada, de fotografia encaixotada e de livro pela metade, e sentimento que essas coisas pela casa são nossas representações. Paulo Mendes Campos já sentenciou: “O amor acaba. Numa esquina... Num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio...” Até com ele o domingo acaba.

É dia de crônica existencialista, de jornal cheio e televisão desligada para evitar aqueles que transformam esse num calvário. Domingo é tênis leve ou sandália rasteira também. E também são primos e cunhados num eterno almoço insosso. É tédio para os jovens casais e obrigação para os velhos casais, ou vice-versa; o domingo é filme francês filmado em sépia. Domingo é silêncio. Domingo traz aparentemente um calmo desespero em todos, como o do rapaz trancado no apartamento tentando aprisionar o domingo, e mal sabe ele que domingo não é traduzível, pois domingo, é um sentimento.
Cid Brasil