(Alexandre Batibuglli) |
1.
Tenho
onze anos e fora o excesso de peso e a ausência de amigos me julgo uma criança
feliz. Alimentado por horas de futebol na TV me matriculo na escolinha de
futebol do CSA. Essa será a primeira de muitas burradas que farei ao longo da
vida. Também será a primeira de muitas desistências e o primeiro de muitos
traumas adquiridos por adentrar em ambientes onde não sou convidado.
2.
União e
força é o que diz o lema do clube. Aqui, muitos meninos vêm para desenvolver
seus potenciais diz o coordenador do lugar. Minha chuteira é da Diadora e
nada pode soar mais esnobe que sua cor, dourada, presente de um tio
metido a viajado e que nunca pisou num campo de futebol de periferia. De cara, já fico marcado como alguém estranho e mimado.
3.
No
campo, como aquecimento, temos que dar vinte voltas ao redor do gramado. Na
segunda volta minha língua já é uma borracha ressecada dentro da boca e tenho a
impressão que a qualquer momento terei o apêndice estrangulado. Ouço alguns
risos dos colegas, vou ficando para trás. Na terceira volta começo a caminhar.
Todos terminam antes de mim.
4.
O
professor vai ao centro do campo e chama todos os meninos, percebendo a minha lentidão,
me manda parar e pede que eu me apresente. Ele não entende o meu nome. Mesmo de
longe sinto seu bafo de cachaça e digo meu nome umas quatro vezes. O conhaque
que ele ingeriu vai me desanimando aos poucos. Assis? Não. Asildis? Não.
Alcebiades? Não. Desiste e pergunta em que posição eu jogo. Meio-Campo,
respondo. Mas onde no meio-campo você joga, filho? Não entendo a pergunta e ele
explica: De volante, na meia-esquerda ou na meia-direita? Bêbado de cansaço e
alcatrão eu só consigo repetir: Alcides, jogo de Alcides, professor... A
gargalhada é geral.
5.
Em
seguida começamos um treino de chutes a gol. O exercício consiste no seguinte: Temos
que passar a bola para o professor, que está na marca do pênalti, e correr até
uma das pontas da grande área para receber o passe dele de volta e chutar de
primeira; quem errar o gol terá de pagar quinze flexões. Parece tudo muito simples
se você algum dia já chutou bolas pesadas e do tamanho de uma melancia, o que
não é o meu caso. Ainda não desenvolvi o meu senso de humor como escudo social
e minha única reação é mandar os meninos irem passando a minha frente para atrasar
o meu destino.
6.
Ser o último
da fila me permitiu ver que nem todos os meninos acertavam o gol e isso foi me dando
uma confiança tão falsa quanto a marca da bola que segurava (a bola apesar do
logo da Nike tinha a marca: Smike). Vou seguindo a fila e finalmente a minha
vez chega. Ponho a bola smike no chão e passo para o professor. Parto em
disparada, meus passos são pesados, meu jogo de pernas é tão lento que sinto como
se estivesse correndo com uma calça jeans molhada. Talvez esteja ainda embriagado.
7.
Meu
espírito é o que chega primeiro na bola e como aprendemos nos filmes ruins que
fantasmas e matéria não fazem boas duplas de ataque, furo o chute. Enquanto
vejo a bola sair quicando como um saci zombeteiro pela lateral, sinto meu corpo
flutuar no vazio devido a força que tentei impor ao chute. Não sei até hoje qual
a dor é pior, a da alma, pelo riso dos colegas; ou a das costelas, pela queda
no chão esturricado.
8.
Num ato
de bondade o professor me perdoa as quinze flexões que teria de fazer por errar
o gol. Talvez ele tenha medo de que ao fim do expediente tenha um cadáver em
mãos para despachar a família. De volta a fila de meninos ouço alguém dizer que
eu parecia uma Jaca caindo. O professor a partir daí já não esquecerá o meu
nome, até o fim do dia serei o Jaca. Com derivações que durante os outros
chutes irão de Jaquinha até Jacaíu. “Vai lá Jaquinha!”.
9.
Faltando
meia hora para o fim do treino são formados dois times para que todos possam
enfim se digladiar à vontade. No coletivo sou colocado como centroavante. Sou
driblado uma infinidade de vezes pelos zagueiros mais esguios; levo ainda duas
cotoveladas e quase tenho o cérebro descolado ao cabecear a bola num escanteio.
Cobro dois laterais sendo que um deles é invalidado porque o cobrei com o pé.
Sou substituído e ouço o pedido dos meninos descalços de que deixe as
chuteiras, pois elas são as únicas coisas que boas em meu desempenho.
10.
Como havia pago dois meses adiantados, fui obrigado a ir nos treinos seguintes só para
ganhar novos apelidos que não vem ao caso citar. Não fiz nenhum gol, nenhum
amigo. Toda terça e quinta já acordava com pavor de ir ao CSA.
11.
Uma
tarde fiquei duas horas rodando a cidade inteira no ônibus até dar a hora de
voltar para casa e tomei gosto por esses passeios. Foi aí, evitando ir treinar,
que acredito ter tomado gosto também pela literatura. Uma tarde, um homem
entrou no ônibus e resolveu minhas angustias. Portando um revólver trinta e
oito anunciou o assalto e levou, entre outras coisas dos passageiros, a minha mochilinha com o
par de chuteiras douradas e o uniforme de treino do CSA. Levou também um fandangos
e um exemplar de Viagem ao centro da terra, do Júlio Verne.
Cid
Brasil