(Rodney Smith) |
0 –
Não estamos em Paris ou Barcelona, estamos em Maceió. 1 – E recordar isso é
muito, muito importante. 2 – Uma vez fui abordado por policiais em um café por
estar escrevendo. 3 - – Pensavam, disse
o policial, que eu mapeava o lugar: Os funcionários achavam que você estava
marcando a saída, a entrada e os pontos cegos (onde não havia câmeras de
seguranças) do local. 4 – Foi a maior glória literária que tive até a presente
data. 5 – Continuei indo até o café depois disso por algum tempo. 6 – Afinal, é
como disse Federico Fellini numa entrevista: “É mais fácil ser fiel a um
restaurante do que a uma mulher”. 7 – Continuei cliente, mas um cliente ágrafo.
8 – Ou seja, um cliente sem lápis e papel, que sequer puxava assunto com os
garçons ou com outros clientes. 9 – Uma tarde, com receio de que me
denunciassem outra vez, parei de freqüentar o Café do Medo. 10 – No dia da abordagem,
o policial que veio até minha mesa e pediu que eu o acompanhasse até a calçada
chamava-se Ramos. Sargento Ramos. 11 – Achei justo, coerente e até sensível da
parte deles que tivessem mandado algum parente de Graciliano Ramos para abordar
um escritor em Maceió. 12 – Como disse, estamos em Maceió, não em Paris, Buenos
Aires ou Barcelona e escrever, assim como ler, observar o ar ou mesmo respirar
é algo perigoso. 13 – O Sargento Ramos perguntou se eu era escritor e falei que
não. 14 – Então você estava escrevendo o que? Ele quis saber. 15 – Uma carta,
respondi. 16 – Carta? E entendi que embutido nessa repetição estava a lembrança
de que estávamos também em 2015 e que já haviam inventado não só o telegrafo,
como também o correio eletrônico e as mensagens de celular e as
videoconferências. 16 – Foi mais ou menos a partir desse dia que passei a me
considerar escritor, mesmo sem livros, mesmo sem obras. 17 – Considere-se algo
você também! Pensei em dizer para o Sargento Ramos. 18 – Mas só disse: É, uma
carta... 19 – Como estávamos íntimos e estamos em Maceió, Sargento Ramos
perguntou para quem era a carta (na hora imaginei que ele ainda me considerasse
um bandido, depois vi que era apenas curiosidade). 20 – Falei que era uma carta
me candidatando a uma entrevista de emprego e ele aceitou essa, ou fingiu
aceitar, embora mirasse aqui e ali, a folha que eu tinha nas mãos; se não me
engano ele até me ofereceu uma carona quando falei que morava no Tabuleiro. 21 –
Lógico que não aceitei. 22 – Temi virar estatística. 23 – Isso foi ano passado.
24 – Está tarde, passando próximo ao Mirante do Bebedouro, vi Sargento Ramos,
em trajes civis, olhando o entardecer na Lagoa Mundaú. 25 – Quando retornei,
pelo mesmo caminho, uma hora depois, já escuro, ele permanecia na mesma
posição. 26 – Ou morreu sentando. 27 – Ou estava muito próximo de abandonar a
policia e começar a escrever cartas e contos vadios. 28 – Ou pensava em fazer
tudo num só gesto, realizar sua grande obra: Atirar-se do barranco antes de
mirar o vazio durante uma tarde inteira. 29 – Mas isso são conjecturas, devaneios
meus, literatura, é claro! 30 – Eu estava atrasado. Não me aproximei para
perguntar.
Cid
Brasil
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