(Edouard Manet) |
Também não temos os ídolos que queremos. O primeiro artista que vi
na vida foi um cantor de churrascaria, um gaúcho chamado Batista. Meu pai, um
de seus melhores amigos e por muitos anos mecenas de sua carreira, garantia que
ele, o primeiro artista (ou alguém denominado assim), nunca deu um dia de
serviço que não fosse segurando um violão. Batista foi até o fim de sua
existência, que infelizmente terminou sábado passado, fiel a seu destino de
cigarra. Zombador das formigas.
Quando não era domingo, dias de seus shows na churrascaria,
aparecia na minha casa montando numa bicicleta. Conversava com a empregada, cantava
para a Tânia algumas canções do Roberto Carlos, permeando seu repertório com músicas
infantis – junto de versões obscenas sobre o natal e o coelho da páscoa – para
que no fim fôssemos no freezer roubar mais uma cerveja do meu pai, que nunca
estava.
E quando era domingo, dia de seus shows, e ele notava que ninguém estava
dando a mínima para suas músicas, punham-se a contar piadas e meu momento
favorito era quando ele revertia os slogans celebres da televisão, culminando
sempre com o da própria churrascaria (na época, o péssimo: “uma família para
servir a sua família”) dizendo: “Uma família para roubar a sua família!”.
Finalmente ganhava aplausos e eu gritava para ele cantar a “da turma da Xuxa e
o parabéns a você”, como o show já não existia, ele cantava e cantava os
parabéns a você e o ilarilarilariê num ritmo gauchesco. Um dia ganhou na
loteria e resolveu virar patrão, investiu todo o dinheiro numa churrascaria em
Pernambuco, possivelmente para ter sempre onde tocar, mas ficou deslocado, não
cantava. Já não andava só, como tanto gostava, precisava de motorista, pois não
sabia dirigir. E sua maior mágoa foi que passaram a lhe entregar as contas nos
lugares, além de lhe pedirem dinheiro emprestado. O papel tinha se invertido e agora
o aplaudiam sem o violão, riam quando não dizia nada. Escapou dessa de
bicicleta. Só e na mesma Monark bateu outra vez na porta de minha casa e eu perguntei
pelo carro, pelo motorista e ele respondeu: “Se fui pobre não me lembro, se fui
rico me roubaram”. Mas meu pai tinha se separado da minha mãe e já não havia
cerveja em casa. Só guaraná e ele ainda tomou dois comigo e cantou a música da
Xuxa e por fim, refletiu um bocado e disse que as coisas iriam mudar. Nunca
mais apareceu.
A última vez que o vi, ele, já diagnosticado com cirrose, estava em
Sarandi, no Rio Grande do Sul, “se exilando”. As formigas venceram. Tentando
lhe alegrar um pouco, contei quando ia até a casa de minha mãe, visita-la, eu fazia
questão de por seu CD para tocar, para relembrar daquele tempo. E o Batista
limitou-se a repetir: “Meu CD... Aquele tempo...”.
Espero que tenha ido muita gente ao seu velório e que nele, alguém
faça como fez o próprio Batista no velório do meu pai, propondo junto dos
amigos, que cada um recordasse “algum causo alegre do falecido, para conservar
a memória”. Se possível, gostaria que alguém abrisse “uma gelada” no enterro,
como ele tanto quis fazer e foi recriminado por todos. Se não levamos a vida
que queremos bem que podíamos ter o velório que precisamos. Fazia tempo que eu
não bebia e se agora, nesse café metido a besta, toma a primeira, é em sua
homenagem. Baita personagem!
Cid Brasil