Recentemente recebi a notícia de que
precisarei fazer uma cirurgia de desvio de septo. Resignado, corri o mais
rápido possível para fazer os exames de praxe. Tão ocupado estive com esses afazeres
que nem pensei muito na tal cirurgia e no aspecto vampiresco do meu otorrino.
Só me apavorei de fato quando me dei conta de que precisarei passar 24hs em
observação dentro de um hospital, dividindo o espaço com outro convalescente.
O auxiliar do médico, que
carinhosamente apelidei de Igor – sendo ele o assistente do Dr. Frankenstein –
notando minhas dúvidas e angústias sobre o pós-operatório, perguntou se eu
sofria de nosocomefobia (medo de hospital, ele traduziu depois) ou de algum
tipo de psicopatia social já que por três ou quatro vezes lhe perguntei se não
podia ser liberado no mesmo dia e se não era viável me colocarem num quarto
sozinho.
– O que me apavora é passar 24hs
assistindo a TV aberta – confessei.
***
Em outra época, quando só havia
passado por uma cirurgia de fimose e não era tão metido assim, fui um ávido
consumidor de canais abertos. Assistia desde programas de culinária que me
auxiliavam a deglutir o almoço, até excelentes shows dominicais sobre como ser
um bom motorista de caminhão ou um exímio pescador esportivo na bacia
amazônica. Sem contar o mestrado que imagino ter conseguido como ouvinte no
Telecurso 2000.
Um dos meus preferidos era um
programa de culinária exibido ao meio dia na Band. Não lembro o nome do
gordinho careca que apresentava, recordo apenas que ele mais parecia um
torturador fazendo alta gastronomia do que um chef. Não que eu entenda muito de
pratos, talheres e sabores, mas sendo nuggets de frango e arroz congelado a
reprise diária, até se ele preparasse um ovo frito eu iria chamar de haute
cuisine.
Meus pais trabalhavam muito e só
chegavam a noite, hora em que mal bebiam um copo d’água e já iam capotar na
cama. Creio que se eles houvessem olhado com mais carinho para o interior da
geladeira teriam visto meu estoque de caixas contendo os pedaços de papelão
empanado.
Uma faxineira, que mais parecia um
índio de madeira (incluindo o silêncio), vinha semanalmente espalhar a poeira
da casa e preparar as porções do arroz-Highlander. Porém, isto não é desculpa
para uma dieta ruim, a questão é que entre as tranqueiras que um nugget pode
levar dentro de si deve haver algo ali ia que corroía meus neurônios aos
poucos, fazendo com que eu sofresse de uma esquizofrenia galinácea, tanto que a
noite, ao ser indagado por minha mãe o que almoçara, tratava logo de cacarejar:
– Hoje fui de Peixe ao Scalope…
Aprendi na TV, vendo um cozinheiro preparar…
Ela, cansada, passava até o quarto
comentando que aquilo era muito bom, sem contar que eu parecia fazer milagres
com o dinheiro que sempre ficava na cômoda para uma eventual emergência.
Não lembro quando comecei a
desenvolver a técnica de mentir para mim mesmo, sei que aquilo foi tão natural
quanto ir dormir com uma vela acesa em cima do sofá e não acordar mais. Consigo
apenas me ver, em frente a antiga Semp Toshiba, feito um samurai no alto de uma
montanha treinando ao pôr do sol meus golpes, sincronizando o que via na tela
com o que restava no prato, embarcando num spaghetti al pesto tendo a boca
pequenos pedaços de botinas, pés de galinha e conservantes. Após o banquete,
mudava de canal e saboreava os desenhos, o Chapolin e até aquele seriado
Blossom, tudo sem culpa. Sequer notava quando os deuses, ou a Palmirinha
Onofre, reprisavam o episódio do Pica-Pau faminto onde ele devorava até as
folhas do calendário.
Algum ingrediente alucinógeno deve
brotar da mistura de exemplares da Revista Hermes® triturados com meia dúzia de
miúdos de frango aliados aquela realidade virtual, pois cheguei ao cúmulo de numa
tarde treinar o meu discurso na sede da ONU relatando a descoberta da cura para
a fome no mundo. Meus antolhos caíram no dia em que desmaiei na quadra do
colégio e ainda delirando falei para a enfermeira do posto de saúde:
– Hum, muito bom esse camarão com
queijo roquefort, foi a senhora que fez?
– Menino, você tá tomando soro na
veia…
De sobremesa recebi a intimação de
minha mãe para todos os dias ir até o seu trabalho e almoçar sob sua
supervisão. Após um prato com feijão, verdura e carne de verdade finalmente
recobrei a consciência.
E só então lembrei
que meus pais eram donos de um restaurante.
Texto originalmente publicado em 25
de setembro de 2017 no site da REVISTA DOS ESCRITORES MUITO ANÔNIMOS (EMA)
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