(Gérard DuBois) |
Hoje assumi um compromisso com um homem morto. Ele se chama Juvenal
da Silva Pereira (quem o conhecer, peço que por favor dê um passo a frente e apresente
a biografia do defunto). Antes que me denunciem ou mudem de canal, explico
logo:
Tenho um pai e um irmão já falecidos e em entardeceres bonitos me
dirijo até a última morada dos dois – onde devem brigar ou maquinar planos
absurdos contra os vivos – e levo flores e quase sempre um livro, já que, como
não sei rezar, procuro anima-los com alguma coisa. Tampouco acredito em
lágrimas, já que eles, os mortos, devem detestar que se chore a seus pés,
principalmente por se sentirem culpados seja pela morte ou pelas decepções que
causaram. Às vezes só faço perguntas; às vezes debocho de suas antigas obsessões
– que devem continuar as mesmas – e às vezes escrevo bobagens que não tem nada
a ver com eles dois. Porém, no dia aqui assinalado avistei no túmulo ao lado de
meus parentes um casal chorando. Na verdade, a mulher tinha a cabeça baixa e
mexia os ombros como se estivesse rindo, embora se questionasse, aqui e ali, em
alto e bom som, do por que da morte. Obviamente ela devia desconhecer a
maravilhosa frase que Paulo Autran disse numa de suas últimas entrevistas de que
“a vida é um fato e que ela só é maravilhosa, justamente por ter um fim”. Enfim.
Por existir a morte.
E sem querer atrapalhar o luto dos vizinhos de papai e de Diogo
Brasil, sentei-me num túmulo mais ou menos distante e fiz como todos: Esperei. O
casal demorou e a certa altura o homem também começou a chorar. Era como se ele
do nada tivesse se dado conta de que perdeu alguém, ou de que deveria ter dito
algo que não disse, ou como eu, que deveria fazer alguma coisa para não chamar
tanto a atenção.
Enfim... O fato é que certa altura, para cumprir melhor meu papel, comecei
a ler o romance que levava para que pensassem ser um livro de orações. Quando o
casal sumiu, olhei melhor o jazigo a minha frente. Era de Seu Juvenal, que
estaria agora em 2015 com a nada desprezível idade de 90 anos (certamente teria
algo a ensinar, ou mesmo algo a desaprender, o que também é importante) e pude notar
como sua última e definitiva identidade, aquela que levava seu nome, seu
nascimento e sua morte também estavam à beira do sumiço. Pensei nos possíveis
parentes distantes do Seu Juvenal, que já não lhe levam flores e lágrimas, e me
perguntei se tiraram muitas fotos dele quando vivo. Torci para que sim e que
houvesse algum bisneto curioso, um bisneto que perguntasse pela memória do
bisavô... Curiosamente o livro que li para Seu Juvenal lembrava que todas as
caveiras sorriem. Rodrigo Fresán, o argentino, disse isso. Deixei as flores que
levava para Seu Juvenal. Contei meus problemas e menti um pouco sobre algumas
vitórias. Quase roubei flores dos túmulos abastados para decorar sua casa. Mais
tarde, fui com a lanterna do celular até meu pai e meu irmão. Pedi que não
sentissem ciúmes. Estava escuro para sentir ciúmes e lembrei que eles estavam
mortos e que já era hora de se abraçarem. Depois me despedi deles e me fui.
Cid Brasil